NETTO PERDE SUA ALMA Escrito por Tabajara Ruas, Ligia Walper e Fernando Marés de Souza BASEADO NO LIVRO HOMÔNIMO DE TABAJARA RUAS PARTE 1 1 / EXT / NOITE / FACHADA DO HOSPITAL Black. Ruídos de tempestade: trovões e chuva. Close de olho de lagarto: nele vemos reflexos de relâmpagos e uma sentinela de capa enxarcada. Vemos um hospital militar numa noite de chuva. No portão principal, sob a bandeira argentina, duas sentinelas molhadas, vestindo longas capas. Passamos em steadicam pelas sentinelas, avançamos pelo jardim molhado. Num chafariz, o lagarto. Seguimos até a porta, ela se abre, a música sobe, vemos a sombra do lagarto avançando na parede. Créditos: NETTO PERDE SUA ALMA 2 / INT / NOITE / CORREDOR DO HOSPITAL Continuamos em steadicam pelo corredor. Créditos dos atores e equipe. Nas paredes, sombras da chuva e reflexos de relâmpagos. O lagarto continua aparecendo intermitentemente. Vemos uma porta entreaberta, onde está uma plaqueta: Dr. Philipe Fointainebleux. Cirujano. Vemos o Dr. Fointainebleux dormindo numa cadeira, de boca aberta. Uma porta bate em algum lugar. Continuamos em Steadicam até a porta no final do corredor. CARTÃO Hospital Militar de Corrientes, Argentina, 1o. de julho de 1866. A porta se abre, entramos no quarto. 3 / INT / NOITE / QUARTO DO HOSPITAL Vemos três camas no quarto, com enormes mosquiteiros pendurados no teto. Na cama da esquerda está Netto, na da direita está o Major Ramírez, gordo, imenso. A cama do centro está desocupada. Os dois dormem profundamente. CARTÃO Segundo ano da guerra entre a Tríplice Aliança e o Paraguai. Enquadramos o rosto de Netto que está com os olhos fechados. CARTÃO Madrugada 4 / INT / NOITE / QUARTO DO HOSPITAL Vemos Netto que se vira na cama, de olhos fechados. VOZ DE MILONGA (off) General mentiroso! Netto se move, inquieto, muda de posição. 4/ EXT / NOITE / CHARCO Em PB, sem som, vemos Netto coberto de lama, desesperado, rastejando no barro, com um sabre cravado em sua coxa. 5/ INT/NOITE/QUARTO DO HOSPITAL Netto desperta, abre os olhos, fica olhando o teto. 6/ EXT / NOITE / MARGEM DA LAGOA TUYUTY A câmera acompanha em close os rostos tensos de 15 prisioneiros paraguaios. Estão na margem da lagoa, num cercado de bambu, amarrados uns aos outros por cordas feitas de cipós. São guardados por 3 sentinelas. Do bosque de jataís se desprega uma neblina branca. A câmera acompanha os prisioneiros até a margem da lagoa, onde apanha a imagem de Netto, nela refletida. Netto e Osório estão parados na margem olhando os prisioneiro. NETTO (pensativo) General Osório, vender prisioneiros como escravos é uma indignidade. Mas esta não é uma guerra como as outras. OSÓRIO (sombrio) Não, não é. Encarando Netto Sob meu comando, general Netto, ninguém vende prisioneiros. Vosmecê não pensa que eu concilio com essas atitudes, general. Ou pensa? NETTO (com secura) Sei que vosmecê não pode fiscalizar tudo que acontece em três exércitos, general. Três comandos diferentes, três propostas diferentes. OSÓRIO Quatro, general Netto. NETTO Quatro? OSÓRIO O seu exército é o quarto. Longa pausa, expectativa de Netto. A Brigada Ligeira. 7 / EXT / DIA / CAMPO Vemos a bandeira tricolor da República Rio-grandense, e em seguida os cavaleiros Netto, Teixeira, Lucas, Joaquim, Calengo e Caldeira, cercados por Quero-quero, Palometa, Chupim o Velho e Milonga, e seguidos por um pelotão de trinta lanceiros negros com suas jaquetas vermelhas e suas cartolas negras, empunhando compridas lanças. 8 / EXT / NOITE / MARGEM DA LAGOA TUYUTY De volta a Netto e Osório às margens da lagoa. NETTO Muito tempo atrás, muitos anos atrás, eu tive a ilusão de que era invencível, de que tinha o direito e a justiça do meu lado e que por isso era invencível. Isso me dava o direito de ter um exército. Hoje, isso não me alegra. OSÓRIO Quando nos conhecemos, eu era um jovem alferes de cavalaria de um exército invasor. NETTO E eu um jovem capitão. OSÓRIO Nossa primeira guerra. OSÓRIO Estou cheio de esperanças amargas, meu amigo. Espero que o final desta guerra traga um novo perfil para o país. Espero que a escravidão termine. Espero... NETTO Esperamos muitas coisas há muito tempo. Ouve-se um leve rumor de água agitada. Netto firma os olhos mas nada era visível. E então, pouco a pouco, do interior da neblina, vai tomando forma, lento e silencioso, longo e escuro, o perfil de uma canoa. É conduzida por um homem coberto por uma capa negra. O homem impulsiona a canoa com uma vara comprida, seguro do rumo, sem pressa. NETTO Caronte! Osório parece não entender. Netto indica a canoa com o queixo e recita: Per me si va nella cità dolente, Per me si va nell’eterno dolore OSÓRIO Ah! O barqueiro do Inferno. “Deixai toda esperança, vós que entrais.” NETTO Ainda tenho o volume que vosmecê me deu. Me serviu para aprender o italiano. OSÓRIO Vosmecê teve tempo. NETTO As noites de inverno são compridas em Piedra Sola. A canoa entra num juncal ali perto e desaparece. começam a caminhar na margem da lagoa. OSÓRIO Convoquei uma reunião dos oficiais para esta noite. Se houver combate amanhã, vosmecê terá uma missão diferente? NETTO Diferente? OSÓRIO Até agora vosmecê esteve sempre na vanguarda, com a Brigada Ligeira abrindo caminho. NETTO Mesmo que quisesse, amanhã não poderia comandar uma carga. Os pobres bichos estão estropeados e sem ração. OSÓRIO Amanhã vosmecê fica na retaguarda. NETTO Na retaguarda? OSÓRIO Tenho a impressão de que Solano vai preparar uma surpresa. NETTO (apontando a bruma) Ele está numa fortaleza. Por que iria nos atacar? OSÓRIO Não tenho razões. Intuição. Só isso. NETTO Oigaletê! OSÓRIO Intuição, meu amigo, é sempre melhor que toda essa conversa fiada sobre estratégia. Um certo general Netto me ensinou isso. Netto dá uma risada curta, mas torna-se subitamente alerta. Alguma coisa bate entre os juncos da margem, provocando um som estranho, que não era o dos sapos nem dos insetos. Procuram a causa do ruído, cautelosos. Encontram o cadáver de um soldado paraguaio, comido pelos peixes. Está preso entre os juncos, e a corrente que por ali passa o empurra para a praia. As pernas do soldado, enroscadas nos juncos, o impedem de chegar à margem. As dragonas douradas flutuam sobre a água escura. NETTO Era atrás dele que Caronte andava. OSÓRIO Se era, já o achou. 9 / INT / NOITE / QUARTO DO HOSPITAL Uma porta bate em algum lugar. Vemos as três camas no quarto, com os enormes mosquiteiros pendurados no teto. O major Ramírez dorme, murmurando obscenidades. Close em Netto. 10 / EXT / MADRUGADA / CHARCO Close de patas de cavalo. A cavalaria de Netto avança na água lodosa, com lanças e sabres apontados, as bandeiras do Império do Brasil e do Rio Grande desfraldadas. Escorre sangue da perna de Netto e nela está cravado o sabre. 11 / INT / NOITE / QUARTO DO HOSPITAL Netto abre os olhos, fica longamente olhando o teto. Depois senta na cama, olha para o lado, percebe a cama vazia. NETTO (agitado) Ramírez, Ramírez! O Major Ramírez apenas resmunga e se mexe, pesado. Ramírez! Ramírez! RAMÍREZ (Sem se mover.) Hmmm. NETTO Levaram o capitão de los Santos. RAMÍREZ Mmmm. NETTO Levaram o capitão de los Santos, entendeu? Alguém entrou aqui enquanto a gente dormia e levou o capitão de los Santos. Ramírez torna a se mexer.. Ramírez, Ramirez! Ramírez! Ramírez se vira, incomodado, e encara Netto. Tem um parche negro no olho e uma enorme cicatriz dividindo o rosto de alto a baixo. RAMÍREZ Que passa? NETTO Levaram o capitão de los Santos. RAMÍREZ Levaram o capitão de los Santos? NETTO Não está vendo a cama vazia? Levaram enquanto a gente dormia. RAMÍREZ E daí? NETTO Como ... e daí? RAMÍREZ Ele não servia para mais nada mesmo. Os dois homens ficam se encarando, então Ramírez dá as costas a Netto e puxa o lençol para a cabeça. Netto se deita vagarosamente e fica a olhar o teto, ouvindo a chuva e uma porta batendo em algum lugar. FADE 12 / INT / MANHÃ / QUARTO HOSPITAL Mesmo enquadramento da cena anterior. A luz inunda o quarto. Vemos o quarto com as três camas ocupadas. Netto, Ramírez e o capitão de Los Santos ao centro. A enfermeira Zubiaurre cuida da ferida na perna de Netto. Os três homens olham para a enfermeira Zubiaurre. Ela é bonita e coquete e simula indiferença aos olhares. DE LOS SANTOS A receita é simples, irmã. Basta uma lebre, uma garrafa de vinho e um pouco de imaginação. A imaginação consta do seguinte, segundo a índia Concepción, hoje com cento e dois anos. O capitão de los Santos olha para Netto com uma cumplicidade caricata. Duas colheres de sopa de vinagre, um molho de salsa, azeite, cravo e noz moscada, sal e pimenta do reino. Ah, sim, e uma cebola picadinha. Começa a enrolar os bigodes com coquetaria. Lave, limpe e corte a lebre em pedaços, e depois a leve ao fogo numa panela com água e o vinho tinto. Faça um refogado com azeite, sal, cebola e pimenta do reino, mais vinagre e água. Quando o refogado estiver pronto, junte-o com a lebre, que já deve estar cozida, misture bem, deixe mais um pouco no fogo e depois sirva. Deixa de enrolar os bigodes, maneja até conseguir um olhar de sinceridade infantil. Com todo o respeito, irmã Zubiaurre, a garantia é de cinco horas. Cinco horas com o membro ereto e firme, como uma sentinela do 2o. Corpo montando guarda. O Major ri, Zubiaurre continua indiferente. Não estou querendo me exibir, irmãzinha, é uma experiência científica. Qualquer cristão pode experimentar. Até o tenente-coronel Fointainebleux. Claro que a receita não garante aumentar o tamanho do membro do coronel, porque isso é coisa que vai contra a vontade do Criador. O capitão de los Santos dá outra gargalhada mas cala-se de golpe, ao ver na porta do quarto o alto e magro tenente-coronel Fointainebleux, com o sorriso falso pendurado nos lábios. FOINTAINEBLEUX Boas notícias para o senhor, capitão de los Santos. Hoje vamos fazer nossa pequena cirurgia. Netto e Zubiaurre se olham, O major Ramírez busca o olhar de pavor de de los Santos e sorri, dissimulado. FADE 13 / INT / ENTARDECER / QUARTO DO HOSPITAL O capitão de los Santos abre os olhos, despertando da letargia imposta pelos soníferos. Fica olhando o teto, vira para um lado, encontra o olhar do major Ramírez, desvia do olhar, busca Netto, mas este cochila. O capitão de los Santos suspira, coça o peito, baixa o olhar, examina as pernas e pouco a pouco seu rosto vai se enchendo de pavor. Sua mão busca, tateia, mas não encontra nada. Suas duas pernas foram amputadas na altura dos joelhos. O capitão de los Santos senta na cama, trêmulo, não acreditando no que vê e súbito começa a gritar. Ramírez ri. Netto desperta assustado. O Capitão de los Santos entra num desespero cada vez maior, seus gritos aumentam, Netto sai da cama, vestindo um longo camisolão branco e agarra o capitão. NETTO Calma, calma, capitão. De los Santos soluça como uma criança. DE LOS SANTOS General, ele fez isso de propósito! A enfermeira Zubiaurre entra no quarto correndo e ajuda Netto a segurar o capitão de los Santos, que dá pulos e soluça e grita completamente desesperado. DE LOS SANTOS General, ele fez isso de propósito! Ele fez isso de propósito! 14 / INT / MADRUGADA / QUARTO DO HOSPITAL Sombra do lagarto na parede. O sargento Caldeira entra em quadro, contra-luz. Netto dorme. VOZ DE MILONGA (OFF) Morre, general! Netto abre os olhos. E então senta na cama, surpreso. Uma sombra está parada ao lado da cama. É o sargento Caldeira. Ele está de pé vestindo uma capa preta. NETTO Vosmecê por aqui, sargento? Como le vai? CALDEIRA Levando a vida no más, general. NETTO Como entrou a esta hora, sargento? CALDEIRA Eu tenho o passo leve. NETTO É um prazer ver vosmecê por aqui, sargento. Ninguém me visita neste depósito de infelizes. Sente no más. Caldeira tira a capa Está vestindo a blusa vermelha do Corpo de Lanceiros Negros. Na cintura carrega uma pistola. Ele senta numa cadeira ao lado da cama. CALDEIRA Ninguém tem tempo para visitas, general. A guerra está braba. NETTO Eu sei, eu sei. Não quis me queixar. Foi só um comentário. Como está a Brigada, sargento? CALDEIRA O moral está bom. Essa guerra é que não é boa. NETTO Não, essa guerra não é boa. CALDEIRA Como está a saúde, general? NETTO Vai se levando, sargento. CALDEIRA A febre não passa? NETTO Não, a febre não passa. Não fica bem para um homem estar aí batendo os dentes, não é mesmo, sargento? CALDEIRA Não, general, não fica bem. Pausa. NETTO Sargento, sonhei com Tuyuty. 15 / EXT / NOITE / CHARCO Chove. Em PB, sem som, vemos Netto coberto de lama, desesperado, rastejando no barro, com um sabre cravado em sua coxa. 16 / INT / MADRUGADA / QUARTO DO HOSPITAL De volta a Netto e Caldeira. NETTO Não fizemos feio em Tuyuty, sargento. Fizemos? CALDEIRA Não, general. NETTO Tínhamos que defender o curral e o defendemos. 17 / EXT / DIA / CURRAL Chove à cântaros. Vemos Netto, Caldeira, um oficial e mais dois negros entrincheirados na cerca do curral, dando tiros. Os cavalos saltam e relincham. 18 / INT / MADRUGADA / QUARTO DO HOSPITAL De volta a Netto e Caldeira. CALDEIRA Essa é a verdade. NETTO Isso me consola. Osório tinha razão quando achava que López ia tomar a iniciativa. Sorriem, ficam pensativos, ouvindo a chuva. CALDEIRA Notícias de casa, general? NETTO O correio é difícil. Maria já me escreveu, a estância está bem, apesar da guerra, e as meninas estão com saúde. Mas as notícias demoram. Netto recosta-se nos travesseiros, olha os mosquiteiros que balançam. Quando penso nas meninas, tenho a sensação que arrancaram um pedaço de mim. 18A / EXT / DIA / PIEDRA SOLA Duas meninas de cinco e três anos brincam com um cão (Gaudério) em torno da casa fazenda. 18B / INT / NOITE / QUARTO DO HOSPITAL Netto se contrai e dá um gemido. Logo, envergonhado, vira o rosto, contempla a cama ao lado, vazia. Sargento, vosmecê lembra do capitão de los Santos? CALDEIRA Como não vou me lembrar? O capitão de los Santos era uma pessoa muito alegre. NETTO Aconteceu uma coisa horrível. Atrai o sargento Caldeira para perto. Amputaram as duas pernas do capitão. CALDEIRA Barbaridade. E por que fizeram isso? NETTO Por que? Olha para Ramírez Por que? Isso é o que me remói. Por que? Depois de algum tempo o sargento toca no bolso da túnica. CALDEIRA Recebi uma carta, general. NETTO Uma carta? CALDEIRA Eu vim aqui para le mostrar a carta. É do conselheiro. De Domingos de Almeida. NETTO Uma carta do Domingos! CALDEIRA O conselheiro recebeu uma carta do capitão Garibaldi. NETTO Oigaletê! Uma carta do corsário! Então ele ainda está vivo. CALDEIRA Bem vivo e campeante. Uma carta da Itália. Parece que hoje ele é general. General ou coisa ainda maior. Mas não esqueceu da gente. Pergunta pelos companheiros da revolução de 35. NETTO Revolução de 35... Já passou tanto tempo assim, sargento? CALDEIRA Trinta e um anos, general. O conselheiro Domingos teve a bondade de copiar trechos da carta do capitão Garibaldi, general, e pediu que se fosse possível, que eu le mostrasse. NETTO Leia no más. CALDEIRA Escute. É dele, do capitão Garibaldi. O sargento Caldeira emposta a voz. “Eu vi batalhas mais disputadas, mas nunca vi em nenhuma parte homens mais valentes nem cavaleiros mais brilhantes que os da cavalaria Rio-grandense, em cujas fileiras comecei a desprezar o perigo e combater dignamente pela causa sagrada das gentes.” NETTO O corsário continua sedutor. CALDEIRA Tem mais: “E, repassando na memória as vicissitudes de minha vida no vosso meio em seis anos de ativíssima guerra, como em delírio, exclamo: Close de Netto. ...onde estão agora esses belicosos filhos do Continente, tão majestosamente terríveis nos combates? Onde Bento Gonçalves, Netto, Canabarro, Teixeira e tantos valorosos que não lembro? Close de Caldeira. Quando penso no Rio Grande, nessa bela província, quando recordo o acolhimento com que fui recebido no grêmio de suas famílias, onde fui considerado como filho, sinto-me verdadeiramente comovido. E este passado da minha vida se imprime na minha memória como alguma coisa de sobrenatural, de mágico, de verdadeiramente romântico!” NETTO Romântico? Mas bá! Pausa Éramos românticos, sargento Caldeira? CALDEIRA Vosmecê me disse que tudo que tem importância na vida são fatos políticos, general. NETTO Eu disse isso, sargento? CALDEIRA Na primeira vez que nos encontramos, general. NETTO Naquele tempo eu era ligeiro de casco. CALDEIRA Eu acreditei no que vosmecê me disse, general. A voz do sargento torna-se íntima. Na minha pobreza, eu precisava acreditar em alguma coisa. Em qualquer coisa. Pra bem ou pra mal, passei a vida toda atrás dum fato político. Netto incorpora-se, o rosto marcado. NETTO Vosmecê acha que eu lhe menti, sargento? CALDEIRA Vosmecê nunca mentiu para mim, general. NETTO Que horas são, sargento? CALDEIRA É madrugada, general. NETTO (desconfiado) Como vosmecê entrou aqui, sargento? CALDEIRA Tenho o passo leve. Instantes depois, acrescenta. E não tenho botas, general. Netto busca os olhos do sargento e o atrai para perto de si. NETTO (sussurrando) Sargento Caldeira, preciso matar um homem. PARTE 2 19 / EXT / NOITE / RIO GUAÍBA Quatro sombras se movem na beira do rio, cobertas pela neblina: Netto, Teixeira, Garibaldi e um canoeiro. Sobre essas imagens: CARTÃO Vinte e seis anos antes Todos entram numa canoa, Netto é o último. Ele a empurra e salta para dentro. (Esta marcação dos movimentos de Netto se repete exatamente igual na sequência final do filme.) CARTÃO Província de São Pedro do Rio Grande, margem esquerda do rio Guaíba, 8 de abril de 1840. A canoa começa a se afastar na neblina. CARTÃO Quinto ano da rebelião rio-grandense contra o Império do Brasil. Enquadramos Garibaldi, sentado no fundo da canoa, que observa insistentemente Netto, com um sorriso. CARTÃO Onze horas da noite. Garibaldi faz um gesto. Os remos se imobilizam. CANOEIRO (sussurrando) A patrulha Uma luz brilha, distante. CARTÃO REUNIÃO NO MORRO DA FORTALEZA A canoa começa a vagar à deriva, com os quatro homens estirados no fundo dela, incômodos, os rostos encostados na madeira úmida, mal- humorados, em silêncio. Netto sente o rosto de Garibaldi muito próximo do seu. GARIBALDI (sussurrando) Tenho inveja do senhor, general. Netto adivinha os olhos azuis diretamente sobre seu rosto. Quantos homens no mundo tiveram o privilégio de proclamar uma república? Muito poucos. Veramente, muito poucos. O senhor é um assinalado. Pausa demorada. Eu conheci alguns generais na minha terra e em outras terras também. Conheci generais italianos e generais franceses. Conheci os generais dos mouros. Nenhum deles proclamou uma república. A pausa. Netto cada vez mais aflito. E, no entanto, como eram orgulhosos aqueles generais. Como eram vaidosos. Um general francês, um general italiano, um general mouro iria empurrar uma canoa com três companheiros dentro? Dio! Entrariam primeiro, sentariam no melhor lugar e que um subordinado molhasse os pés na água fria. NETTO (suavemente) Senhor Garibaldi, vá a puta que o pariu, se me faz favor. GARIBALDI Bene, bene... Pausa Eu precisava dizer isto, general. É sincero. Eu tenho um sonho, general. Um sonho. CANOEIRO Está se afastando. Recomeçam a remar. GARIBALDI Na verdade, são dois sonhos. Primo, unir minha pátria dividida. Secundo, com minha pátria já unida, proclamar a república. Pausa melancólica. Quando não tinha onde morar, quando não tinha o que fazer, quando em fuga não tinha sequer companheiros, eu pensava que era louco e que sonhava coisas impossíveis, coisas irrealizáveis, coisas que se sonha apenas pelo prazer de sonhar e pelo consolo de sonhar. Pausa sonhadora. Aqui, nestas terras, eu aprendi que se pode realizar qualquer sonho, general. Mesmo o mais louco, mesmo o aparentemente mais impossível. 21 / EXT / ALVORADA / PAMPA 1 Primeiríssimo plano de botas pisando o chão, raios de sol explodem com as pisadas que ressoam. Netto e Teixeira observam cautelosos os campos verdes e planos que se estendem na sua frente, tomados pela luz do amanhecer. (Aqui aparece o pampa pela primeira vez, e também é dia claro pela primeira vez. Muda a luz e os espaços se tornam enormes e desertos. Terceiro movimento da Quinta.) TEIXEIRA Precisamos de cavalos. 22 / EXT/ MANHÃ / PAMPA 2 Longa seqüência, com diversos planos mostrando Netto e Teixeira caminhando pela vastidão do pampa. Quinta. Netto e Teixeira bebem água num riacho e observam os avestruzes. Tempo. Netto e Teixeira caminham lado a lado, descendo a rampa de uma coxilha de onde se avista a vastidão do pampa. TEIXEIRA General, me perdoe a franqueza, mas está com uma cara de emburrado que dá até medo. Netto igonora a provocação e segue em frente. Ânimo, general. Caminhar faz bem para a saúde. Abre os braços, um pouco exageradamente. General Netto, respire este ar. Netto apressa o passo, Teixeira emparelha com ele, sorrindo e olhando Netto nos olhos: Vou lhe dizer uma coisa, general: aproveite esta caminhada com uma meditação sobre o duro que é ser soldado de infantaria, e no ódio com que nos olham quando passamos todos elegantes nos nossos cavalos bem aperados. Netto para de repente e enrola o poncho para trás. NETTO Capitão Teixeira, a elegância é uma arma da cavalaria. Segue em frente, Teixeira o alcança, Netto para. Por acaso o senhor não andou mandando alisar o seu bigode? TEIXEIRA General, uma carga de cavalaria em geral desarma os bigodes mais bem penteados. Mandando alisar a ferro eles agüentam qualquer parada. 23 / EXT / DIA / COXILHA Netto e Teixeira estão deitados no alto de uma coxilha. Teixeira observa, através de um binóculo, uma fazendola perdida na imensidão do pampa. 24 / EXT / MANHÃ / FAZENDOLA Netto e Teixeira cruzam a porteira da fazendola. De um lado um potreiro com vários cavalos, do outro, uma velha casa. Dois cães latem. A porta da casa se abre e uma mulher jovem aparece apontando uma carabina para os dois. MULHER Fiquem onde estão. Netto e Teixeira erguem as mãos. NETTO Somos gente de paz. TEIXEIRA Nos perdemos de nossos companheiros, senhora. Tudo que queremos é comprar alguns cavalos para seguir viagem. MULHER Perderam-se de quem? TEIXEIRA Estamos em viagem para Porto Alegre. Nos perdemos durante a noite. Tudo o que queremos é um par de cavalos, senhora. Pagaremos bem. Temos dinheiro. MULHER Perderam-se de quem? TEIXEIRA Estamos vindo de Bagé. Queremos ir até Porto Alegre comprar uma tropilha. MULHER Republicanos ou caramurus? NETTO Somos rio-grandenses, minha senhora. MULHER Existem vários tipos de rio-grandenses, e muitos deles não valem o que comem. TEIXEIRA Somos republicanos. Não nos importa sua grei, minha senhora. Não lutamos contra mulheres. Estamos num apuro. Precisamos de cavalos para buscar nossos companheiros. Pagaremos bem. MULHER O exército republicano está longe. TEIXEIRA Sabemos que está longe, minha senhora. Somos oficiais republicanos numa missão difícil. Atravessamos o rio e acostamos longe do ponto que pretendíamos. Tudo que queremos são dois cavalos. Partiremos imediatamente. MULHER Não tenho cavalos. Os três olham ao mesmo tempo para o potreiro. TEIXEIRA São pontos de vista, minha senhora. MULHER Preciso dos cavalos para o trabalho na estância. NETTO Acredito na senhora, mas não vejo peões que necessitem de tantos cavalos. A senhora tem uma propriedade bonita, mas parece que os homens estão longe. Dois cavalos não lhe farão falta. A senhora não terá prejuízo. Pagaremos bem. A mulher não mostra a menor indecisão. MULHER Vou começar a contar até três. Quando eu disser três, quero ver vosmecês do outro lado da porteira, e quero ver ela bem fechada. Netto e Teixeira se olham. TEIXEIRA Se a senhora for republicana, estará ajudando seu marido ou seu pai ou seus irmãos que estão na guerra. Eles aprovariam esse gesto. Se a senhora for de outro partido, iremos embora. Nossa luta é pela civilização, minha senhora. Por um mundo melhor. A máscara de firmeza dela mostra uma tênue fissura. Nesse momento, do lado direito da casa, surge outra mulher, velha, empunhando outra carabina. A mulher jovem retoma a firmeza. MULHER Um. Netto toca no chapéu. NETTO Passar bem, minhas senhoras. Tenham um bom dia. Dentro de três dias, talvez eu tenha oportunidade de entregar uma mensagem para um parente de vosmecês, dizer que passei por aqui e que tudo estava bem. Infelizmente... VELHA Como se chama vosmecê? Teixeira adianta-se. TEIXEIRA Eu sou o capitão Teixeira Nunes, do 1o. Corpo de Lanceiros. O nome de meu companheiro deve ficar protegido por razões militares. Mas eu posso dar todas informações a meu respeito e mostrar os documentos que provam minha identidade. VELHA Vosmecê é dos Teixeira de Piratini? TEIXEIRA Precisamente, minha senhora. E com muita honra. As duas mulheres não se olham, mas afrouxam a guarda. E vossa família, como se chama, se me permite a pergunta? VELHA Guimarães. TEIXEIRA Guimarães. Não será por acaso parente dos Guimarães que estão servindo no 2o. Corpo de Cavalaria, sob as ordens do coronel Onofre Pires? Capitão Luis Guimarães e seu irmão, o tenente Antoninho? VELHA São meus filhos. O Luis é o mais velho, casado aqui com minha nora, Maria Luíza. NETTO Então somos todos republicanos. Todos se calam por um instante. Pelo lado esquerdo da casa surge a ponta de uma carabina. Atrás dela aparece um negrinho de quinze anos, apontando a arma para os dois homens com imensa cautela, os grandes olhos arregalados. Todos riem. O negrinho fica sério. MULHER É Milonga. Netto toca na aba do chapéu, saudando o negrinho. NETTO Vejo que as senhoras estão bem protegidas. Nestes tempos de guerra, é importante estar atento. O rapaz sabe usar o instrumento que tem nas mãos? VELHA Mostra pra o moço, Milonga. Milonga dá alguns passos na direção de Netto e de Teixeira. Aponta para um crânio de boi pendurado num moirão do potreiro, a uns trinta metros. Ergue a arma, apoia ao ombro e atira. Uma lasca salta da guampa direita do crânio. Faz pequena correção e novo disparo. Outra lasca salta da guampa esquerda. NETTO (com absoluta sinceridade) Oigaletê índio bom! Teixeira bate palmas acompanhadas dum largo sorriso. TEIXEIRA As senhoras estão realmente bem protegidas com nosso amigo Milonga. Parabéns. VELHA Vosmecês aceitam um amargo? Enquanto isso, podemos ir falando sobre os cavalos. 25 / EXT / DIA / PAMPA 3 Netto e Teixeira cavalgam pelo pampa tomado de luz, num campo de flores amarelas. Longa seqüência, com diversos planos mostrando a extensão da paisagem. Quinta. 26 / EXT / DIA / PAMPA 4 Netto e Teixeira descansam à sombra de uma figueira. Os cavalos pastam. Teixeira aponta um vulto no horizonte. TEIXEIRA Vem alguém. Netto assesta o binóculo. NETTO Ora, ora... Netto sorri e passa o binóculos para Teixeira. (Nesta seqüência o tempo de ação é real, sem cortes.) Quando o cavaleiro está bem próximo, o charque já esquenta na pequena panela de Teixeira. O cavaleiro é Milonga, que monta um tordilho novo, arisco. Um violão bate na anca do animal. NETTO A que devemos essa honra? TEIXEIRA Aconteceu alguma coisa na estância? MILONGA Não, senhor, não aconteceu nada. Milonga baixa os olhos. Dona Maria Luíza mandou eu acompanhar os senhores, para o causo de se perderem. TEIXEIRA Diga à dona Maria Luíza que não tenha cuidado. Que nós agradecemos muito, mas que somos vaqueanos destas paragens. Por aqui a gente não se perde. MILONGA Eu conheço os atalhos como ninguém, capitão Teixeira. TEIXEIRA Não duvido, meu amigo. Apeie no más. A comida é pouca mas dá para todos. Milonga desmonta. MILONGA Le agradeço, mas trouxe minha comida. Milonga se junta aos outros dois, e desfaz o embrulho que protege sua comida. NETTO (apontando para a anca do tordilho, enquanto come) Bonita guitarra, amigo Milonga. Milonga sorri, mas continua a comer calado. Quando terminarmos de comer o amigo vai montar nesse tordilho e voltar para a estância. As senhoras da casa devem estar preocupadas. O amigo não me leve a mal, mas acho difícil que dona Maria Luíza tenha le mandado para nos fazer companhia. Milonga continua comendo de cabeça baixa. O que me diz disso, amigo Milonga? Estou enganado? Milonga sacode a cabeça tristemente. MILONGA Não, senhor. NETTO Então o que faz por aqui, Milonga? MILONGA Eu saí fugido lá da estância. Milonga olha para Teixeira. Quero entrar para o Corpo de Lanceiros, capitão. Teixeira olha para Netto e depois para Milonga TEIXEIRA Vosmecê me parece muito jovem para ser soldado, Milonga. Em tua casa vão ficar preocupados. MILONGA Eu não tenho casa, capitão. TEIXEIRA Tua família não mora lá na estância? MILONGA Minha mãe mora. TEIXEIRA Ela vai ficar preocupada. As senhoras da casa vão ficar preocupadas. Milonga fica de cabeça baixa. Tu tens muito tempo para virar soldado e ir para guerra, Milonga. Aproveita enquanto podes ficar em casa. MILONGA Eu não tenho casa, capitão. TEIXEIRA Tu não és bem tratado na estância, Milonga? MILONGA Sou sim senhor, capitão. TEIXEIRA Então, Milonga. Milonga continua de cabeça baixa. MILONGA Lá eu sou um escravo, capitão. Teixeira se mexe com desconforto. TEIXEIRA Tu és muito jovem para ser soldado, Milonga. MILONGA Não para ser escravo, capitão. Netto e Teixeira se entreolham. TEIXEIRA Milonga, nós estamos fazendo esta guerra porque queremos acabar não só com a escravidão, mas com muitas outras espécies de maldade e de vergonha que existem. Quando tu for maior, serás bem-vindo ao Corpo, mas agora, o melhor para ti e para tua mãe, é voltares para a fazenda e ajudares as pessoas que moram lá. Elas precisam de ti. Se tu fizer isso por tua própria vontade, tu te sentirás livre. Netto aperta o braço de Milonga com certa camaradagem truculenta. NETTO Anda, monta nesse cavalo e volta para a estância. Quando esta guerra acabar, tu vais ser um homem livre, Milonga. Milonga concorda com a cabeça, gravemente. MILONGA Vosmecê é o general Netto, o Proclamador. Netto olha para Teixeira com a expressão de e-esta-agora! Homens negros, à roda do fogo, falam no general Netto e no Gavião Milonga encara Teixeira com fervor. Dizem que os dois andam juntos e lutam juntos e querem a liberdade para os homens negros. TEIXEIRA Milonga... MILONGA Todo negro que eu conheço quer lutar ao lado do general Netto e do Gavião. Lá na estância, quando o capitão disse que o nome dele era Teixeira, eu adivinhei que ele era o Gavião e vosmecê era o General dos Escravos. Milonga persigna-se. Vosmecês atravessaram meu caminho pela vontade de Nosso Senhor Jesus Cristo. Netto levanta-se com o prato na mão. Milonga e Teixeira também se levantam. NETTO Muito bem, Milonga. Mas tu vais ouvir o conselho do capitão Teixeira. Vais voltar para a estância, vais cuidar da tua mãe, vais cuidar das tuas obrigações. E vais esquecer que me viste andando por estas bandas. Entendido? Milonga concorda com a cabeça. O capitão e eu temos uma missão. E temos que seguir sós. MILONGA O general não pode dizer o nome porque anda numa missão contra os inimigos dos homens negros. Ninguém vai saber o nome do general. O nome do general vai ficar guardado aqui dentro. Milonga toca o coração. 27 / EXT / DIA / PAMPA 5 Netto e Teixeira galopam no pampa. Longa seqüência, com diversos planos mostrando a paisagem. Quinta. 28 / EXT / NOITE / PAMPA 6 Netto e Teixeira acampados, ao redor de uma fogueira. Céu estrelado. 29 / EXT / ALVORADA / PAMPA 7 Netto e Teixeira cavalgam com o nascer do sol. 30 / EXT / DIA / PAMPA 8 O sol cria uma tira vermelha no horizonte. O cavalo de Teixeira enfia a pata num buraco de tatu e quebra a perna. Os dois desmontam. 31 / EXT / DIA / PAMPA 9 Teixeira apanha a arma e mata o cavalo. O tiro espanta um bando de biguás que flanava nas águas do arroio ali perto, escondido pela vegetação. NETTO Mala suerte, ao meio dia chegaríamos no acampamento. Olham para os lados. Teixeira é o primeiro a ver os homens saindo de entre as árvores do capão. São cinco, estão a pouco mais de cem metros, e caminham em direção a eles, aparentemente sem pressa. NETTO Charruas. Quando estão a uns vinte metros, os cinco charruas afastam-se uns dos outros, criando um semicírculo em torno de Netto e Teixeira. Carregam boleadeiras e lanças. Um deles veste um dólmã do exército imperial, com divisas de cabo. Traz um revólver enfiado no cinturão. Aponta para a montaria de Netto. CABO CHARRUA O cabajo, don. O cabo charrua faz um gesto com a mão, como para enviarem o animal na direção dele. TEIXEIRA Eu sabia, desgraça nunca vem só. NETTO Vamos ter que lutar com esses bugres. O rifle. Teixeira apanha o rifle e o engatilha. CABO CHARRUA O cabajo. NETTO Precisamos do cavalo. CABO CHARRUA O cabajo é para um ato de caridá, don. Temos um hombre mal ferido. NETTO Sentimos muito, mas também temos problemas. CABO CHARRUA Dexe o cabajo no más e se vaja em paz. CHARRUA DA BOLEADEIRA Nuestro Senhor Jesus le há de recompensar, don. Teixeira escora o rifle no ombro. TEIXEIRA Comecem a se afastar ou vai chumbo. NETTO Estamos bem armados. Acho melhor cada um seguir seu rumo na boa paz. O cabo charrua sorri e olha para os outros. CABO CHARRUA Somos de paz. Solo queremos o cabajo. CHARRUA DA BOLEADEIRA Es para um ato de caridá, don. Logo, num gesto tranqüilo, o charrua da boleadeira começa a rebolear com a ela acima da cabeça. A velocidade do movimento vai aumentando e pouco a pouco começa a provocar um som exasperante. Os outros quatro começam a se mover, ameaçadores e esquivos. O cabo, no centro, pousa mão na culatra do revólver. O charrua da direita empunha uma lança, com uma bandeirola vermelha. O charrua da esquerda tem um sabre quebrado, mas afiado e brilhante. Na extrema direita do grupo, um charrua completamente nu, com um colar de presas ao pescoço, também empunha uma lança. Na outra extrema, o da boleadeira. Este, aumenta o movimento circular do instrumento acima de sua cabeça. Afastam-se uns dos outros, aumentando o círculo, tornando mais difícil a fuga. Netto e Teixeira ficam de costas, um defendendo a retaguarda do outro. Netto engatilha a pistola com a mão direita e empunha o sabre com a esquerda. NETTO A situação é desesperada. Vamos jogar tudo. Não há arreglo. TEIXEIRA Vou atirar. NETTO Espera. Fica de olho no cabo. Ele tem a pistola. O charrua da boleadeira atira as três pedras que voam na direção de Teixeira, que aperta o gatilho do rifle. Atingido no tórax, o charrua da boleadeira cai com um grito. Teixeira cai maneado nas tiras de couro e nas pedras. Netto e o cabo charrua atiram instantaneamente um contra o outro. O chapéu de Netto voa arrancado pela bala. O cabo dá um salto para um lado, é atingido de raspão no antebraço, se desequilibra e cai. Os dois charruas com lança avançam três passos na expectativa de ver o que vai acontecer. O que tem o sabre quebrado avança contra Teixeira. Ergue o sabre acima da cabeça. Teixeira esperneia no chão tentando livrar-se das tiras e das pedras. O vulto do charrua com o sabre cria uma sombra na sua frente. Teixeira aperta o gatilho e o atinge à queima-roupa. O charrua cai sobre ele, estrebuchando. Teixeira fica lambuzado em sangue e vísceras. Netto atira outra vez contra o cabo que continua rolando no chão. O cabo também atira: a bala raspa a coxa de Netto, cortando a calça e fazendo o sangue jorrar na perna. A bala de Netto raspa a cabeça do cabo e arranca seu chapéu. O charrua nu sente a oportunidade: levanta o braço para arremessar a lança contra Netto, desprevenido. O charrua da direita empunha a lança de bandeirola vermelha com as duas mãos e arremete contra Teixeira, maneado e tentando tirar de cima o corpo do charrua do sabre quebrado. O charrua nu, no instante em que vai arremessar a lança contra Netto, contorce-se violentamente, atravessado por uma bala no pescoço. A bala faz saltar em pedaços o colar de presas. Arremessa a lança, mas ela sai torta. Antes de cair morto, olha indagadoramente para o cavaleiro que vem a toda brida em direção a eles, curvado sobre o pescoço da montaria, atirando com um rifle. Netto dispara outra vez contra o cabo que ainda rola no chão. O cabo responde ao fogo, mas sem direção. Teixeira, com desespero, empurra o corpo morto de cima de si e desvia a carga da lança de bandeirola vermelha com o cano do rifle. O charrua voa por cima dos dois corpos e cai mais adiante. Torna a erguer-se, empunha a lança e volta ao ataque. Teixeira não tem balas e não consegue levantar-se. O charrua com a lança de bandeirola vermelha dá um grito agudo, abre os braços e cai morto, atravessado no peito por uma bala. A bala foi desferida pelo cavaleiro que galopava agora em diagonal a onde estavam. Teixeira, comendo pó, vê o cavaleiro erguido nos estribos, empunhando o rifle com as duas mãos, manejando o cavalo com toques dos joelhos. O cavaleiro vira o rifle para o cabo que agora começa a correr, perseguido por Netto que manca. O cavaleiro atira, o cabo charrua cai. Netto, perplexo, volta-se para ver o cavaleiro continuar a toda velocidade, saltar sobre o corpo do cabo, fazer uma curva, voltar, abaixar-se sem diminuir o galope e levantar seu chapéu enfiando um dedo no furo da bala. Ofegantes, pálidos, molhados de suor, espantados e doloridos, Netto e Teixeira vêem Milonga dar uma volta triunfante em torno deles, uma mão erguendo bem alto o rifle, a outra o chapéu de Netto, e depois aproximar-se a trote, com o enorme sorriso infantil no rosto, o violão batendo na anca do tordilho. 32 / EXT / DIA / ACAMPAMENTO FARROUPILHA (Multidão.) Close nos rostos dos soldados acampados. Estão sentados e começam a levantar-se quando vêem Netto e Teixeira se aproximando a cavalo. Netto entra no acampamento com Milonga na garupa. Teixeira marcha um pouco atrás, respondendo às saudações com toques na aba do chapéu. O Corpo de Lanceiros, forma duas alas por onde eles passam. Cada soldado bate com a lança no peito, compassadamente, formando um som imponente, que desconcerta Milonga e obriga-o a fazer força para evitar as lágrimas. Milonga adivinha que aquele negro alto e forte que apanha as rédeas do cavalo de Netto é o lendário sargento Caldeira. O sargento olha com curiosidade irônica para Milonga. NETTO Este cavalheiro é um voluntário, sargento Caldeira. Vosmecê toma conta dele. O sargento Caldeira ergue os braços musculosos, apanha Milonga como se fosse uma pluma e deposita-o no chão. Netto abraça demoradamente o coronel Joaquim Pedro Soares. Milonga sente-se engolido pelo tropel de negros que cercam a montaria do general, que querem tocá-lo, que riem e começam a batucar em longos tambores de couro. 33 / EXT / NOITE / ACAMPAMENTO FARROUPILHA Netto está de pé. Teixeira, Joaquim Pedro, Lucas, Calengo e outros oficiais sentados em torno de uma fogueira. A luz das chamas doura seus rostos. Todos escutam em silêncio. Ouve-se batidas de tambores. NETTO O general Bento Gonçalves, presidente da República Rio- grandense, está marchando em direção ao morro da Fortaleza, com três mil homens. Deve chegar lá dentro de três dias. Vamos reunir o máximo de força que pudermos e depois também vamos marchar para o morro da Fortaleza. Juntando nossas forças com a do general Bento Gonçalves, somaremos mais de seis mil soldados, o maior exército já formado por homens livres no Continente de São Pedro. Milonga aproxima-se de mansinho e acocora-se atrás de Teixeira. Segue a fala de Netto com atenção. Acampado junto ao morro, está o comandante de Armas do Império, Dom Manoel Jorge, O Velho, com um exército de sete mil homens. Eles têm artilharia e infantaria, coisa que nós não temos. O plano do general Bento Gonçalves é chegar por trás do morro e cair de surpresa sobre Dom Manuel Jorge. Vencendo essa batalha, a República estará consolidada para sempre. Senhores, vamos partir esta madrugada para o morro da Fortaleza. 34 / EXT / MANHÃ / PAMPA 10 O sol surge no horizonte. O exército está marchando em fila, com as bandeiras desfraldadas. Quinta. 35 / EXT / MANHÃ / PAMPA 11 (Multidão - Quinta.) Netto e Teixeira passam a trote perto do sargento Caldeira. Milonga vem um pouco atrás do sargento. Netto aponta para Milonga. NETTO Sargento, como está se comportando o recruta? CALDEIRA Por enquanto vai bem, general. Quero ver quando começar a ordem unida. E os exercícios com tiro. Netto e Teixeira se entreolham. NETTO Sargento, manda o recruta caprichar na pontaria. Esse negrinho tem um olho meio torto. Teixeira pisca o olho para Milonga, que faz continência, sério, escondendo o orgulho. Um mensageiro de Bento Gonçalves se aproxima a galope. MENSAGEIRO (gritando) O general Bento Gonçalves rompeu o cerco do rio Caí e já está no morro da Fortaleza. Um viva se levanta da tropa. 36 / EXT / TARDE / ACAMPAMENTO DE BENTO GONÇALVES (Multidão.) O exército de Netto chega ao acampamento de Bento Gonçalves. Os dois exércitos se saúdam com vivas, tiros para o ar, chapéus voando e abraços e risadas. Bento Gonçalves avança entre os soldados, cercado pelos generais João Antônio e Davi Canabarro. O Capitão Lucas de Oliveira segue os três. CALDEIRA (para Milonga) Ali estão os quatro generais da República. Bento Gonçalves, João Antônio, Davi Canabarro e Netto. Netto e Bento Gonçalves apertam a mãos. BENTO GONÇALVES Esta carreira eu ganhei. NETTO Eu sou bom é em cancha reta. Dão risadas, trocam sonoros tapas nas costas. 37 / EXT / NOITE / ACAMPAMENTO DE BENTO GONÇALVES Ao crepúsculo, Netto e Bento Gonçalves, com Lucas, Joaquim, Teixeira e demais oficiais sobem numa pedra e olham o acampamento, com os fogos acesos. A fumaça sobe para as estrelas. Ao fundo escuta-se o som da batucada dos lanceiros negros BENTO GONÇALVES Parece um sonho. Seis mil homens. Este é o maior exército que a República já reuniu. E amanhã, se tudo der certo, será o maior dia da República. 38 / EXT / NOITE / ACAMPAMENTO DE BENTO GONÇALVES Estamos no meio da batucada dos lanceiros negros. Milonga acompanha, com a guitarra nas costas, batendo palmas. A batucada para de repente. CHUPIM O VELHO Agora é tua vez negrinho, faz esta guitarra chorar. À princípio, fica envergonhado, mas Quero-quero e Palometa insistem e dão tapas em suas costas, então sorri e começa a dedilhar o instrumento, e depois se põe a entoar uma milonga: “Milonga para o General Netto” Quando Milonga se cala o silêncio permanece alguns segundos suspenso no ar, e então todos aplaudem e riem e dão tapas nas costas de Milonga. PALOMETA Agora toca uma coisa alegre, negrinho! Dão risadas, e o tumulto de vozes aumenta, o batuque “Tema dos Lanceiros” começa. Milonga adivinha o sargento Caldeira atrás de si. Volta-se. O sargento tem nas mãos a camisa vermelha do 1o. Corpo de Lanceiros, cuidadosamente dobrada. CALDEIRA É teu, soldado. Milonga fica um instante desconcertado. Depois, estende as mãos. O batuque dos lanceiros sobe. Milonga tira a camisa que veste e joga-a no fogo. Depois, veste a camisa vermelha dos lanceiros. Enquadramos a fogueira. PARTE 3 39 / INT / CREPÚSCULO / BARRACA MILITAR Silêncio absoluto. Netto está dentro da barraca, visto de cima, dobrado sobre uma mesa, completamente imóvel. Close da mão: escorre um pingo de sangue da manga para a palma da mão. Sobre ela, aparecem espaçadamente: CARTÃO Quatro anos antes CARTÃO Campos do Seival, Província de São Pedro do Rio Grande, 11 de setembro de 1836. CARTÃO Primeiro ano da rebelião Rio-grandense contra o Império do Brasil. CARTÃO Seis horas da tarde. CARTÃO DORSAL DAS ENCANTADAS TEIXEIRA (off) Com licença. Teixeira enfia a cabeça na porta da barraca. NETTO Entra, Teixeira. TEIXEIRA O que é isso na tua mão? NETTO Sangue. TEIXEIRA Sangue? Vosmecê foi ferido? NETTO Não. Não sei. Acho que não. TEIXEIRA Sente dor? NETTO Não. Quer dizer, sim. Mas foi um golpe de boleadeira. Doem as costelas. Não consigo tirar o dólmã. TEIXEIRA Preciso de sua ajuda, coronel. O major Davi Francisco não quer render-se. Encontrei ele caído lá na sanga, muito ferido. O senhor talvez o convença, o senhor o conhece. NETTO O Davi? Vamos lá. 40 / EXT / CREPÚSCULO / ACAMPAMENTO MILITAR Netto e Teixeira saem da barraca. Cenário pós-batalha: feridos, fumaça negra, canhões, corpos estirados, cavalos mancando. Encontram Joaquim. NETTO Joaquim, vem conosco. Os três montam nos cavalos. O campo está juncado de cadáveres e estandartes. Ouve-se gemidos e lamentos. Grupos andam a buscar feridos. Cavalgam em direção a sanga. JOAQUIM O que aconteceu? 41 / EXT / CREPÚSCULO / PAMPA 12 Teixeira contorna a sanga quando vê o oficial imperial arrastando-se na lama. Tem o dólmã rasgado e está sem capacete. A lama forma estranha máscara sobre o rosto. TEIXEIRA (off) Encontrei um amigo nosso, o Major Davi. Não quer se entregar. Teixeira aproxima-se. TEIXEIRA Major, está preso. Entregue sua espada. MAJOR DAVI Nunca. Teixeira encosta a ponta da espada no peito do caído. TEIXEIRA É inútil, major. Vosmecê foi derrotado numa boa luta. Entregue a espada. MAJOR DAVI Já le respondi, capitão. Teixeira retira a espada. TEIXEIRA Vosmecê é Davi Francisco, não é mesmo? Eu sou o capitão dos Dragões Joaquim Teixeira Nunes. Vosmecê está ferido, major. Acho que quebrou a perna. Será tratado como merece um camarada de armas. MAJOR DAVI Me desculpe, capitão, mas minha espada não le entrego. Teixeira olhou ao redor com desânimo. TEIXEIRA Não me entrega sua espada porque meu posto é inferior? MAJOR DAVI Não é por isso, capitão. 42 / EXT / CREPÚSCULO / PAMPA 13 Netto, Teixeira e Joaquim cavalgam lado a lado. Chegam a beira da sanga. Davi Francisco procura erguer-se, apoiado na espada. Com a chegada dos três, torna a sentar-se na lama. Netto desmonta. Avança pela água lodosa. NETTO Davi, me entregue essa espada. MAJOR DAVI Não. NETTO Mas que homem mas custoso, meu Deus do céu. O combate já terminou, vamos tratar dessa perna. Davi Francisco recua no barro, arrastando-se. Bueno, fica com a espada. Bota ela na bainha e me dá o braço. Vamos sair deste charco. MAJOR DAVI Não posso fazer isso, coronel. NETTO Não? E por que não? MAJOR DAVI Vosmecê sabe. Netto suspira. NETTO Bueno... Para Joaquim. Fica aqui. Volta ao cavalo e monta. Inclina-se para Teixeira. Vamos buscar alguns dos prisioneiros para levantá-lo. Que homem mais custoso. Afastam-se a galope. Estacam frente ao quadrado onde estava prisioneiro Caldwell. Netto desmonta e passa entre os soldados. NETTO Major Caldwell, preciso de sua ajuda. O Davi meteu na cabeça que não se entrega. Está caído lá na beira da sanga, com um tiro na perna. O senhor pode me ajudar a convencê-lo. CALDWELL Vou com o senhor. Um adolescente, corneteiro, deu um passo em direção a Netto. CORNETEIRO Coronel, não me leve a mal, mas o major Davi é meu amigo. Posso ir junto? NETTO. Dêem um cavalo para esse guri. Escutam um tiro distante. Olham na direção da sanga. Montam. Quando se aproximam em trote acelerado, há um grupo de soldados rodeando Davi Francisco. Caminham fazendo ruído na água lodosa. Afastam os soldados que se amontoam. O major Davi Francisco tem o rosto enterrado na lama. A mão direita empunha uma pistola. JOAQUIM Me distraí olhando os patos. Não pude fazer nada. Como ia saber que ele ia fazer uma coisa dessas? NETTO Está bem, está bem. Ficam olhando o corpo. Depois, abaixam-se e procuraram erguê-lo. Sem muito esforço, as várias mãos carregam-no até o cavalo do adolescente. O rapaz salta para a garupa e ampara o corpo cambaleante. Voltam a passo lento. Toque de Silêncio. 43 / INT / NOITE / BARRACA MILITAR Netto faz uma careta de dor quando Joaquim começa a desabotoar o dólmã, mas fecha os olhos e agüenta. JOAQUIM Cento e oitenta. NETTO O quê? JOAQUIM Contaram cento e oitenta até agora. Quarenta e cinco são nossos. NETTO Oficiais? JOAQUIM Marcelino. NETTO Eu vi. JOAQUIM Lança do Pedro Canga. NETTO Eram primos. JOAQUIM O Pedro também morreu. NETTO Eu vi. Cento e oitenta? JOAQUIM Até agora. Isto está feio. Acho que quebrou alguma coisa. Cento e oitenta, até agora. Vou chamar o doutor Duarte. NETTO Não chama ninguém. Isso não é nada. A porta da barraca se abre, entram Teixeira e Calengo. TEIXEIRA Com licença. CALENGO Que le pasa, coronel? NETTO Me acertaram com umas bolas no costilhar. Algum índio do Tavares. JOAQUIM Tinha mais de cem charruas com eles. TEIXEIRA Isso está feio. CALENGO Voy hacer una atadura. Calengo rasga em tiras um pala que estava sobre um baú e começa a enrolá-lo no tórax de Netto. Uma guampa lavrada, cheia de canha, passa de mão em mão. Acendem-se palheiros. A fumaça de fumo cru povooa o ambiente apertado da barraca. A porta da barraca se abre mais uma vez. NETTO Lucas! Lucas tira o poncho e arroja-o sobre o baú. LUCAS Já soubemos do triunfo desta manhã. As notícias voam! 44 / EXT / NOITE / CURRAL 2 Netto e Lucas estão debruçados na cerca do curral, olhando os cavalos. LUCAS A palavra final é tua. NETTO Minha? Não me faça rir, capitão. LUCAS Vosmecê está no comando. NETTO Não posso decidir sobre esse assunto sem consultar o coronel Bento Gonçalves. LUCAS É impossível consultar o coronel Bento Gonçalves. NETTO Então vamos esperar para quando seja possível. LUCAS Então talvez seja tarde demais. NETTO Temos todo o tempo do mundo. LUCAS Todo o tempo do mundo? Quem tem todo o tempo do mundo? Nosso povo? Nossas idéias? NETTO Esse negócio não se pode fazer assim de repente. LUCAS Nem esperar todo o tempo do mundo. NETTO Precisamos dar tempo para os acontecimentos amadurecerem. Lucas dá um imperceptível sorriso de astúcia e comiseração. LUCAS Que frase triste, Netto! Já derrubamos o presidente desta província. Já desafiamos o imperador deste país. Já desencadeamos uma guerra. NETTO Desencadear uma guerra não é uma virtude, capitão. LUCAS Não, não é. Talvez seja um dever. NETTO Hoje morreu muita gente boa. Pelo dever. LUCAS Cento e oitenta mortos, coronel Netto. Eu sei muito bem. NETTO Isso não o torna mais cauteloso, capitão? Lucas vislumbra a ironia. LUCAS Perdi amigos queridos. E de ambos os lados. Não estou feliz. Lucas apoia-se no moirão da cerca. Um cavalo aproxima-se. Lucas acaricia o focinho dele. Os acontecimentos já estão caindo de maduros. O que mais falta? Sabíamos que este momento haveria de chegar. NETTO E quem afirma que o momento chegou? LUCAS Nossos camaradas afirmam. NETTO Não temos a palavra do Bento Gonçalves. LUCAS Mas temos a de todos os outros. A maioria esmagadora é a favor. Nossos aliados todos são a favor. Os comerciantes, os estancieiros. Todos os oficiais são a favor. João Manoel é a favor. Domingos é a favor. Netto acaricia a cara do cavalo. NETTO Eu sei... Esses bichos sofreram muito. Foi uma batalha e tanto. LUCAS Foi um golpe que eles jamais esperavam. Estão sem saber o que fazer. Estão desnorteados. É nossa obrigação aproveitar o momento. NETTO Isso faz me lembrar uma palavra que vosmecê gosta de empregar, capitão Lucas. LUCAS Uma palavra? Lucas fica alerta. NETTO Voluntarismo. Palavra bonita, capitão. LUCAS Eu estou falando em sina. Em destino. Não estou falando em política. Estou falando em carne, em osso, em sangue. O destino nos colocou aqui. Onde está o coronel Bento Gonçalves? Não sabemos. Nós estamos aqui. É a sina. O destino. NETTO (empostando a voz) Tentativas voluntaristas para alcançar objetivos seculares mediante a vontade subjetiva. Eu tenho poucas leituras, mas boa memória, capitão. LUCAS Sempre critiquei a vontade subjetiva, o voluntarismo heróico, mas estou falando de fatos, coronel. NETTO E de sina. LUCAS E de sina, sim. Nos coube estar aqui hoje. Coube a vosmecê derrotar o coronel Silva Tavares. Coube a vosmecê o comando destes acontecimentos. Cabe a vosmecê seguir o curso desses acontecimentos. Não se trata de voluntarismo nem de vontade subjetiva. Trata-se de um fato. Não pode fugir a um fato. NETTO Não estou fugindo a nada, Lucas. Justamente estou procurando não fugir a nada. Eu já andei fugido. Não foi uma boa experiência. Mas vamos atear fogo perto dum paiol com pólvora. Lucas sente uma chispa de esperança. LUCAS Já fizemos isso antes. NETTO Mais uma razão para não repetirmos loucuras. LUCAS Nossos camaradas estão seguros de que temos condições de assumir as responsabilidades. Eu pensei nisso profundamente, Netto. Pensei enquanto atravessava a noite vindo para cá. Pensei no momento que soube da vitória sobre o Silva Tavares. Podemos atear esse fogo. NETTO Somos uma Lilliput diante do Império. Gulliver apagou um incêndio em Lilliput mijando sobre a cidade. LUCAS Não seremos humilhados. NETTO (docemente) Eu não serei humilhado, capitão. Isso eu assino embaixo e vosmecê é testemunha. Um relâmpago ilumina os cavalos. Olham para o céu. LUCAS Temos uma causa, temos camaradas. Somos fortes. NETTO Fortes o suficiente para a separação? LUCAS Fortes para fundar uma república. NETTO Não vamos sonhar, Lucas. LUCAS Ao contrário, Netto, vamos sonhar. Vamos sonhar! Sonhando seremos fortes. Só os fracos não sonham. Pensa nisto: amanhã vosmecê será general. NETTO (cortante) Não é hora de se lembrar de postos. Netto tira o chapéu, fica a mexer nas penas pregadas na tira de couro. Outro relâmpago, branco e silencioso, espalha sua luz no curral assustando os animais. LUCAS (conciliador) Pena de caburé. NETTO Ganhei da sentinela. Três penas: uma para o jogo, uma para o amor, uma para a guerra. LUCAS Bem pensado. NETTO (pensativo) O sargento Caldeira me disse que falta uma. LUCAS Falta uma? Para que? NETTO (sério) Para um fato político. LUCAS Pode ser que o sargento tenha razão. NETTO Isso é o que me preocupa. Em geral o sargento Caldeira tem razão. Netto coloca a mão no ombro de Lucas. Meu amigo, volta para a barraca. Conversa com os companheiros. Com calma. Com ponderação. Preciso pensar. Quando eu voltar vamos tomar uma decisão. Lucas se afasta sob o olhar de Netto. Quando ele desaparece Netto acende o palheiro e dá uma tragada funda, que o deixa momentaneamente tonto. Quando a lucidez volta, torna a debruçar-se na cerca de troncos e fica olhando os cavalos. O Sargento Caldeira aparece em um canto, apoiado na cerca. CALDEIRA Pitando, coronel? NETTO Pensando, sargento. Pensando, e pitando, é claro. Netto enfia a mão no bolso da túnica e apanha um palheiro já enrolado. Oferece-o para o sargento. O sargento aceita-o, aceita o fogo, dá uma baforada para o alto. Ficam fumando e olhando os cavalos. NETTO Como era lá em cima, sargento? CALDEIRA Lá em cima? Nas Encantadas? NETTO Por que não ficaram na serra? Por que desceram? Não eram livres por lá? Não estavam seguros? CALDEIRA Para sermos livres, para sermos seguros, precisamos dum país, coronel. Agora, o vento esta mais forte. Os cavalos se inquietam. Quando ouvimos falar da revolução, quando ouvimos falar que a revolução queria a república, queria o fim da escravidão, resolvemos descer. Sem armas, sozinhos, não podíamos desafiar o Império. Mas junto com os revolucionários somos fortes. Somos parte do exército revolucionário. Olha para Netto. Podemos fundar um país, coronel. Um relâmpago ilumina os dorsos dos cavalos. NETTO Meus camaradas também querem um país, sargento. O vento redemoinha no curral e os cavalos se espantam, dando relinchos curtos, encostando-se uns aos outros. O horizonte estremece com relâmpagos. NETTO Está chegando a tempestade. Netto ajeita o poncho nos ombros e sente a dor nas costelas. Boa noite, sargento. CALDEIRA Boa noite, coronel. Netto dá um último olhar aos cavalos e se afasta lentamente, saboreando o vento no rosto. CALDEIRA Coronel. Netto para. Volta-se. Um relâmpago ilumina o grande negro contra o horizonte do pampa. Se vosmecê fundar um país, coronel Netto, eu o acompanho até a porta do Inferno. NETTO Não precisa tanto, sargento. Netto recomeça a caminhar, um pouco curvado, sob o olhar do sargento Caldeira. Close de Netto. 45 / EXT / DIA / PAMPA 14 (Proclamação.) Montado em um cavalo negro, Netto vem ladeado por Joaquim Pedro e Calengo. O sol da manhã brilha na prataria dos arreios. Os três passam em galope curto diante das tropas e depois retornam, postando-se frente a elas. Joaquim Pedro dá ordem de desmontar. Em seguida, dispõe os soldados em quadrado. Os oficiais passam ao centro, perfilados. Os Lanceiros Negros, com Caldeira à frente, estão solenes e imóveis. NETTO Coronel Joaquim, proceda a leitura da ordem do dia. Joaquim Pedro tira da faixa vermelha enrolada na cintura uma folha de papel. Joaquim Pedro dá um toque de esporas no cavalo, adiantando-se. Desenrola a folha de papel. JOAQUIM “Bravos companheiros da 1a. Brigada de Cavalaria. Ontem obtivestes a mais completa vitória sobre os escravos da Corte do Rio de Janeiro.” O silêncio é completo. O vento agita as bandeiras, os cabelos, as crinas dos cavalos. “Nossos compatriotas, os rio-grandenses, estão dispostos como nós a não sofrer por mais tempo a prepotência de um governo tirano, arbitrário e cruel, como o atual. Em todos os ângulos da Província não soa outro eco que Independência, República, Liberdade ou Morte! “ Nova aclamação sobe das tropas. Os cavalos escarvam o chão. “Este eco majestoso que tão constantemente repetis, como uma parte deste solo de homens livres, me faz declarar que proclamamos nossa independência provincial, para o que nos dão bastante direito nossos trabalhos pela liberdade e o triunfo que ontem obtivestes sobre estes miseráveis escravos do poder absoluto! ?” Camaradas! “Nós que compomos a 1a. Brigada do Exército Liberal devemos ser os primeiros a proclamar, como proclamamos, a independência desta Província, a qual fica desligada das demais províncias do Império e forma um Estado livre e independente, com o título de República Rio-grandense, e cujo manifesto às nações civilizadas se fará competentemente.” Um murmúrio percorre a tropa. Camaradas! Joaquim Pedro desembainha a espada. Gritemos pela primeira vez: viva a República Rio-grandense! Viva a independência! Viva o Exército Republicano Rio-grandense! As aclamações sobem novamente. Os vivas se repetem. Os cavalos empinam, relincham. “Campo dos Menezes. Onze de setembro de 1836. Assinado: Antônio de Souza Netto, coronel comandante da 1a. Brigada de Cavalaria.” As últimas palavras são sufocadas pela torrente da vivas e aclamações. Chapéus e lenços são jogados para o ar. Tiros de clavinas espantam perdizes e quero-queros que levantam vôos assustados. CALENGO (apontando o horizonte) Miren! Um ponto aproxima-se rapidamente, aparecendo e desaparecendo nas ondulações das coxilhas. É um cavaleiro e vem a toda brida. JOAQUIM É o Teixeira! Já está bem perto. Vem esporeando o cavalo. Abrem-lhe passagem: irrompe no quadrado e desfralda subitamente uma bandeira. Mais tiros para o ar são disparados. O capitão Teixeira Nunes tem o rosto iluminado. A bandeira que fora buscar é a bandeira da República Rio- grandense - verde, amarela e vermelha. Enquadramos a bandeira demoradamente. A bandeira vai ficando velha, desbotada, e depois, aos poucos, esfarrapada. Bandeira sai de quadro e câmera para na copa de uma árvore. PARTE 4 Sobre imagem da árvore: CARTÃO Nove anos depois. 46 / EXT / DIA / PAMPA 15 Câmera sai da copa da árvore e enquadra três lanceiros negros, Quero- quero, Palometa e Chupim, o Velho, que dormitam à sombra da árvore. O suor brilha nos rostos, desliza nos braços, na curva das espáduas. CARTÃO Ponche Verde. Província de São Pedro do Rio Grande. 2 de março de 1845. Dez cavalos pastam na sombra criada pela grande fronde redonda. Um bando de emas, perto dali, espia, olhos inquietos. Os longos pescoços se movem para todos os lados. CARTÃO Três horas da tarde. Milonga esta bem desperto, um pouco afastado dos três lanceiros, acocorado, olhando fixo para a frente, apoiado na lança. Seu braço direito está decepado na altura do cotovelo. Tem divisas de cabo na túnica gasta. Coloca a mão em pala sobre os olhos ao ver o ponto escuro aparecer na linha do horizonte. CARTÃO ÚLTIMO VERÃO NO CONTINENTE O ponto escuro, pouco a pouco, se transforma num cavaleiro. O bando de emas alarma-se e começa a se afastar. Quando o sargento Caldeira está bastante próximo, montando um tordilho, os três lanceiros vão se erguendo, um a um. O sargento desmonta. CALDEIRA Calhandra me deu o recado. MILONGA Queremos conversar com vosmecê, sargento. CALDEIRA Já sei das estrepolias que andaram fazendo. Não contem comigo. MILONGA Estávamos com fome. Precisávamos comer. CALDEIRA Mas não precisavam matar um velho. MILONGA Ele atirou primeiro. PALOMETA Feriu Quero-quero. QUERO-QUERO É verdade, sargento, veja Quero-quero mostra o braço enfaixado. MILONGA Só queríamos água e comida. CALDEIRA Estavam desertando. MILONGA É sobre isso que queremos falar. CALDEIRA Depois que mataram o velho não temos muito sobre o que falar. MILONGA De minha parte não quero falar sobre um velho morto, sargento. Quero falar sobre o que vosmecê entende por deserção. CALDEIRA Vosmecê é um soldado. Todos vosmecês são soldados. Não podem abandonar o Corpo assim no más. Sabem muito bem disso. QUERO-QUERO Também sabemos que nos prometeram a liberdade PALOMETA Lutamos dez anos para quê, sargento? Para tornar a ser escravos? CALDEIRA Vosmecês não são escravos. PALOMETA Vão nos mandar para o Rio de Janeiro, sargento. MILONGA Lá vamos ser escravos. CALDEIRA O acordo diz que todos continuaremos como soldados. PALOMETA O acordo! Palometa cospe com desprezo. QUERO-QUERO Eu não quero ir para o Rio de Janeiro, sargento. Tenho mulher e filho. Quero ficar aqui. CALDEIRA Vosmecê desertou e matou um homem. QUERO-QUERO Foi pra me defender, sargento. CHUPIM O VELHO Lutamos por uma República. No Seival. No Barro Vermelho. Em Laguna. Em Lages. São José do Norte. Piratini. PALOMETA Tem morto nosso enterrado por todo o Continente. QUERO-QUERO E fora dele. CHUPIM O VELHO Isso não nos dá algum direito? QUERO-QUERO Lutamos porque nos prometeram a liberdade. E agora querem nos mandar para a Corte. PALOMETA Lá vamos ser escravos outra vez. Pausa. MILONGA Sargento, entramos nesta guerra porque seríamos homens livres quando ela terminasse. Faz um dia que ela terminou. A primeira coisa que fizeram foi tirar nossas armas e botar guardas nos vigiando, como se a gente fosse prisioneiro ou inimigo. CALDEIRA Vosmecês estragaram tudo. Desertaram e mataram um civil depois do tratado de paz. MILONGA No meu entender não desertamos, sargento. No meu entender não somos nós os desertores. CALDEIRA Não desertaram? MILONGA Mentiram para nós. CALDEIRA Quem mentiu? MILONGA Todos. Todos mentiram. Os republicanos mentiram. Enquanto precisavam da gente para a guerra, falavam em liberdade, igualdade, fraternidade. Quando a guerra terminou, nos entregaram para os imperiais. CALDEIRA Os republicanos não tinham força política para exigir mais. CHUPIM O VELHO Eles nos abandonaram, sargento. Essa é a verdade. CALDEIRA Os republicanos agora estão enfraquecidos, não podem criar um fato político maior, mas nossos aliados são eles e mais ninguém. Tudo na vida são fatos políticos, Chupim. PALOMETA Queremos ir para as Encantadas, sargento. CHUPIM O VELHO Lá vamos ser livres. MILONGA Queremos que nos guie, sargento. O sargento Caldeira percorre com o olhar a campina abrasada pelo sol, a linha trêmula do horizonte. CALDEIRA Ninguém é livre sendo perseguido o tempo todo. Encara os quatro rostos aflitos onde o suor brilha. Nossa oportunidade de ser livres de verdade é continuar ao lado dos republicanos. Juntar nossas forças. Não importa que a guerra tenha terminado. As idéias continuam. Precisamos de fatos políticos e não de andar vagando pelas serras sem eira nem beira. PALOMETA Para nós quatro, sargento, a guerra não acabou. Se nos agarram, vamos ser fuzilados na hora. MILONGA Para todos os homens negros a guerra não acabou. QUERO-QUERO Vamos para as Encantadas, sargento. Vosmecê conhece aquilo tudo por lá. Vamos ser livres de verdade. CALDEIRA Os tempos mudaram, soldado. A escravidão acabou no mundo inteiro. Vai acabar aqui também. CHUPIM O VELHO Quando, sargento, quando? CALDEIRA Quando chegar a hora. Temos que lutar por isso e não ir viver escondido na serra. É uma questão política. PALOMETA Sargento, vosmecê está falando como um branco. O sargento Caldeira demora a responder. Dá um passo adiante, toca no colar de dentes de jaguar que Palometa usa. CALDEIRA Caçador, eu vim aqui falar com vosmecês porque Calhandra disse que eram irmãos meus que estavam pedindo. Eu nunca derramei o sangue de um irmão meu, mas vosmecê começa a correr esse risco, soldado. PALOMETA Eu não sou mais soldado. Agora eu sou um homem livre. Não me chame mais de soldado. Dá um safanão e tira o colar das mãos do sargento. E não me chame de irmão! Chupim O Velho toca no braço de Palometa. CHUPIM O VELHO Chamamos o sargento para conversar, para pedir conselho, porque confiamos nele. PALOMETA Eu não confio em ninguém! Palometa dá as costas e se afasta do grupo. Vai para trás do umbu e senta-se na raiz. Fica olhando para a frente, para a vastidão deserta. O sargento faz menção de montar no tordilho. Milonga agarra o freio do animal. MILONGA Sargento, quem foi que um dia me disse: Milonga, vosmecê não vai ser mais um negro ignorante que nem eu, que só sabe matar para se sentir livre. Quando a guerra acabar vosmecê vai estudar, vai aprender a pensar, vai entrar na política, vai ser advogado! Milonga dá um riso amargo. Isto foi tudo que eu ganhei, sargento. Ergue o que restava do braço direito, decepado na altura do cotovelo. CALDEIRA A guerra é cruel, Milonga, mas agora ela terminou. MILONGA Terminou para os brancos! CALDEIRA Precisamos encontrar outra maneira de lutar pela nossa liberdade. MILONGA Só existe uma maneira de lutar, sargento. CALDEIRA Milonga, vosmecê pode escolher entre ser um negro ignorante e bruto e viver sozinho na serra ou se aliar com gente que quer transformar as coisas. MILONGA Quem quer transformar o quê, sargento? O que hoje eu sei é que se alguém quer acabar com a escravidão é porque tira algum proveito disso. CALDEIRA Há muita gente boa que quer acabar com a escravidão sem tirar proveito e vosmecês todos sabem muito bem disso. Muita gente boa que deu seu sangue, que deu sua vida! CHUPIM O VELHO Não podemos mais voltar, sargento. Se voltarmos seremos fuzilados. QUERO-QUERO (sonhador) Queremos ir para as Encantadas, sargento. MILONGA (olhando para Caldeira, desafiador) De minha parte vou continuar matando para ser livre. O sargento Caldeira torna a olhar vagarosamente a solidão do pampa ao seu redor. CALDEIRA Cada um é dono do seu destino, Milonga. Monta no tordilho. As Encantadas ficam na direção do nascente. Quatro dias a cavalo. Torce a rédea, esporeia o tordilho e sai do quadro. 47 / EXT / DIA / ACAMPAMENTO DE NETTO Netto e Osório estão dentro de uma barraca, sentados em tocos, frente a frente, e falam em voz baixa. Netto apanha a cuia de chimarrão que o capitão Osório lhe estende. NETTO Fico agradecido pela consideração, meu amigo, mas já resolvi esse assunto. Pensei muito antes de tomar uma decisão. OSÓRIO Vosmecê vai fazer falta no trabalho de reconstrução do país, general. NETTO Isso me lisonjeia, meu amigo, mas aqui ficam homens capazes. Eles saberão o que fazer, bem melhor do que eu. OSÓRIO Estivemos em lados separados nesta guerra, general, mas não estivemos separados pelas idéias. Eu acredito na república, acredito como forma de governo, acredito como modernização de nossa sociedade. Mas tinha compromissos de consciência. NETTO Eu sei, capitão. OSÓRIO Esta guerra fez muita coisa estranha. Veja o general Bento Gonçalves. Não era republicano. Nunca foi. Mas ficou do vosso lado até o fim. Compromisso de consciência. Osório apanha a cuia de volta, enche-a e começa a chupar a bomba. Quando vosmecê parte, general? NETTO Amanhã bem cedo. Muitos camaradas vão comigo. OSÓRIO No Uruguai as coisas não vão ser fáceis. NETTO Não. Vou começar tudo outra vez. OSÓRIO E a estância em Bagé, general? NETTO Já negociei minha estância. Vou comprar uma ponta de gado. Vou ser tropeiro. Eu era tropeiro quando comecei a vida. Tinha dezesseis anos. Agora tenho quarenta, capitão, uma idade boa para recomeçar. Osório enche a cuia e estende-a para Netto. OSÓRIO Lamento não poder demovê-lo dessa idéia, general. NETTO Nas conversas do acordo de paz meus pontos de vista todos foram vencidos, capitão, e eu sempre pretendi ser um homem sensato. Não pude fazer nada a respeito dos escravos e isso me corrói. Sei quando estou vencido. Só me resta ir embora. OSÓRIO A abolição vai chegar, general, assim como a república. NETTO Disso eu não tenho dúvida, capitão. O que me corrói é o destino dos negros que lutaram com os republicanos. Só eles perderam. Netto apanha um palheiro já enrolado no bolso da túnica Eles mantiveram o compromisso com a República. Eles não traíram, capitão. Subitamente parece ficar deprimido, baixa a cabeça, olha em torno. Todas essas traições... Demora a falar. Olhou para Osório. A única coisa decente, nesta situação, era continuar a luta até chegarmos a uma decisão que respeitasse a atuação dos lanceiros durante esses dez anos. Mas continuar uma luta por minha conta e risco seria ir contra a vontade de todos meus camaradas. Sorri com sarcasmo Como vê, capitão, eu também tenho compromissos com minha consciência. Osório recebe a cuia e torna a enchê-la. OSÓRIO Os lanceiros foram os sacrificados. NETTO Não gosto de falar dessas coisas, mas muito revolucionário terminou a guerra rico, capitão. Acende o palheiro com o isqueiro de corda e dá uma baforada para o teto. Me voy a los blancos criar parelheiros. É o melhor que posso fazer nas circunstâncias. Osório larga a cuia sobre o pelego no chão a seu lado e levanta-se. OSÓRIO Não tomo mais seu tempo, general. Netto também se levanta. Osório apanha no bornal um pequeno e sólido volume encadernado em couro. Uma lembrança, general. Netto apanha o volume. “A Divina Comédia” de Dante Alighieri. Sorri. Examina o livro com demorado prazer. NETTO ‘A Divina Comédia’ vai me acompanhar nas noites de inverno. Muito obrigado, meu amigo. OSÓRIO Está em italiano, general. NETTO Mandarei comprar um dicionário em Montevidéu. Abre a porta da tenda. Um enorme sol desce no horizonte. A tarde de verão chega ao fim, pesada, opressiva. Tudo se tinge de vermelho. O acampamento tem um movimento lento, com os soldados fazendo tarefas prosaicas, vagarosos e entediados. Osório faz continência para Netto, depois apertam-se as mãos. OSÓRIO Foi uma honra conversar com vosmecê, general. NETTO Boa sorte, capitão. Netto e Osório observam um cavaleiro se aproximar num galope urgente, levantando uma poeira rosada. O cavaleiro entra no acampamento investindo sobre a soldadesca que precisa saltar para os lados para não ser atropelada, avança até diante da tenda de Netto e estaca o cavalo a cinco metros dele. Milonga é o cavaleiro. MILONGA General mentiroso! Vim pra le matar, general. Osório leva a mão à culatra da pistola. Netto segura seu braço. Tira o palheiro da boca. NETTO Há quanto tempo, amigo Milonga. MILONGA Eu não tenho amigos! A mão esquerda de Milonga desce até o coldre. Vários oficiais acorrem, mas Netto torna a fazer o gesto. NETTO Não quero ouvir nenhum tiro! Soldados se aproximam na expectativa de algo acontecer. NETTO A guerra terminou, Milonga. MILONGA A guerra terminou e eu continuo escravo. NETTO Para mim tu não és escravo, Milonga. MILONGA General, onde está a República que vosmecê proclamou? NETTO Ela não existe mais, Milonga. MILONGA Vosmecê mentiu para nós. NETTO Não, Milonga, eu não menti. Apenas perdi a guerra. MILONGA Onde está o Gavião? NETTO O coronel Teixeira morreu, Milonga. Milonga olha para o céu avermelhado e dá um grito agudo, que faz Netto estremecer. Depois, olha para Netto com olhos frios. Slow de Osório e outros oficiais levando a mão à arma. MILONGA Morre, general! Milonga apanha o revólver, aponta para Netto e aperta o gatilho. No momento do disparo, Milonga é sacudido por um tremor, atingido pela descarga duma carabina. Dobra-se sobre o pescoço do cavalo e cai no chão seco. Todos olham para o sargento Caldeira, que segura nas mãos a carabina fumegante. O sargento Caldeira aproxima-se do corpo caído e curva-se sobre ele. Os soldados o cercam. As exclamações e comentários cessam quando o sargento Caldeira fecha os olhos de Milonga. CALDEIRA Milonga, negrinho burro, matar um general não é mais um fato político. Caldeira levanta-se muito lentamente. Encontra o olhar de Netto. Então, apruma o corpo e se afasta entre os soldados que lhe dão passagem. Depois, Caldeira monta o cavalo e vai se afastando devagarinho, mas de repente crava as esporas e arranca num galope enlouquecido, até desaparecer no horizonte. PARTE 5 48 / EXT / DIA / PAMPA 16 Sobre a imagem vazia do pampa: CARTÃO Dezesseis anos depois. Em travelling enquadramos Netto, que contorna uma grande pedra redonda, pisa com cuidado, empunha um rifle com as mãos enluvadas. CARTÃO Taquarembó, República Oriental do Uruguai. 25 de junho de 1861 O jaguar se crispa sobre uma pedra. A cauda inquieta move-se e o jaguar solta um rugido. Netto vê as unhas se firmando na pedra e intui o instante em que o grande animal voa na sua direção. E é nesse instante que endireita o corpo e aperta o gatilho e salta para o lado, acertando o jaguar em pleno vôo. O jaguar cai a seus pés, morto. Netto toca-o com a bota. CARTÃO Sete horas da manhã. Netto olha o pampa silencioso em seu redor. Ouve um ruído e ergue o rosto para o céu de inverno, totalmente sem nuvens, de um azul transparente. Um pássaro plana bem alto, com as grandes asas abertas. CARTÃO PIEDRA SOLA 49 / EXT / ENTARDECER / ESTÂNCIA DE PIEDRA SOLA Netto cavalga, de poncho e luvas. Puxa o cavalo pela rédea, sobre o qual está o corpo do jaguar. O cão ovelheiro Gaudério passa por eles como um foguete, dá meia volta e retorna, emparelhando com Netto, saltando e dando latidos felizes. Um peão abre a porteira. Netto entra no vasto pátio tomado pelo crepúsculo que se aproxima, constatando com crescente júbilo que sua chegada cria pequena mas barulhenta agitação. Passa pelo poço bem no centro do pátio, por carretas desatreladas, por cavalos de tração debaixo de coberturas de telhas. Cabras e galinhas fogem à sua passagem. Surgem pessoas de todos os lados para ver o grande jaguar amarrado na garupa. As crianças dão gritos de susto e admiração, as mulheres riem felizes com o resultado da caçada e os homens aprovam gravemente, aliviados com o regresso do general. Netto abana e toca na aba do chapéu, respondendo aos cumprimentos. Pára frente à varanda da casa principal. Benedito se aproxima, comedido e elegante, mostrando o grande sorriso. BENEDITO Demorou, padrinho. Já estava desconfiando que o caçador tinha sido o jaguar. NETTO Ele também pensou, mas por pouco tempo. Netto desmonta do cavalo, Benedito se inclina e beija sua mão. BENEDITO Sua benção, padrinho. NETTO Deus te abençoe. Benedito começa a desamarrar o animal morto da garupa do cavalo. Uma índia muita velha aparece na varanda. Netto apanha a lebre amarrada ao serigote do cavalo e atira-o na direção da velha, que o apanha com um risinho satisfeito e uma demonstração exagerada de susto. NETTO Concepción, cozinha este bicho para o jantar. A velha índia ergue a lebre pelas patas e a examina com olhos experientes. ÍNDIA CONCEPCIÓN Tá gorda pra panela. Vou fazer com o Porto de oito anos, general. Pra levantar até defunto. NETTO Macanudo, Concepción. E manda preparar um banho quente pra mim. Em steadicam, acompanhamos Netto subindo os degraus de pedra da varanda bem lentamente, tirando as luvas, sentindo os primeiros sinais do cansaço. 50 / INT / NOITE / PIEDRA SOLA (CASA DE NETTO) Netto está diante do fogo crepitando na lareira, confortavelmente instalado na poltrona de couro, o cálice do Porto ao alcance da mão, sente que sua atenção se desprende do livro e vaga pela casa, captando os leves estalos de madeira Ouve-se o vento assobiando nas frestas das janelas, perturbando as chamas na lareira. O olhar de Netto percorre as paredes onde dançam as sombras criadas pelo fogo, sobre os quadros dos antepassados que vieram de Portugal, sobre a lança de marfim que ganhou de Osório. O livro escorrega de sua mão. 51 / EXT / NOITE / PÁTIO O vento cerca a casa de pedra, despertam redemoinhos no pátio e arrancam as últimas folhas dos cinamomos. O vento inquieta Gaudério que gane baixinho. 52 / INT / PIEDRA SOLA (CASA DE NETTO) A porta da sala se abre. Vemos os pés descalços de um negrinho. Os pés se movem em direção a Netto que continua dormindo. Os pés são de Milonga que para e fica olhando para Netto durante algum tempo. Netto abre os olhos, angustiado, e vê o negrinho parado diante dele. É Benedito. BENEDITO Precisa de alguma coisa, padrinho? NETTO Não. Acho que dormi. BENEDITO Está tudo pronto para a viagem. Apolônio vai chamar a peonada às cinco horas. NETTO Macanudo. BENEDITO Acho que vosmecê deve montar Berceuse, padrinho. Vamos poupar Ruiseñor. NETTO Muy bien. Benedito se abaixa, apanha o livro e o folheia lentamente, com um sorriso. BENEDITO O tiro entrou bem no centro da testa. NETTO Eu sei. Netto fecha os olhos, escuta o vento. Abre os olhos, Benedito folheia o livro. NETTO Pode levar, se quiser. BENEDITO Eu já li. As Viagens de Gulliver. Já. Mr. Swift me deixou acordado todos os dias que vosmecê esteve perseguindo o jaguar. Netto sorri e fecha os olhos. NETTO Eu também li As Viagens noites a dentro sem parar. Nova investida do vento faz o fogo dançar com mais vigor. Acho que vou dormir. Benedito fecha o livro. BENEDITO Padrinho. Netto abre um olho. Queria sua licença para casar. Netto abre o outro olho. NETTO Casar? Endireita-se na poltrona. Vosmecê quer casar? E com quem? BENEDITO Paula. NETTO Paula. Muito bem. A Paula. Gosto dela. Cumpre as obrigações. E é uma mocinha guapa como poucas. Fica de repente carrancudo. Escuta aqui, Benedito, esse casamento é de livre vontade? Tu não andou cantando de galo antes da hora? BENEDITO Nós dois queremos o casório. A família dela aprova. Falta só o senhor me dar sua licença. NETTO Benedito, tu não é muito novo pra ficar maneado pelo casamento? Tu não vai se arrepender depois? BENEDITO Padrinho, eu tenho vinte e oito anos. Se demorar mais vou acabar um velho solteirão. Benedito vê a transformação no rosto de Netto. Não há nenhuma segunda intenção nisso que eu disse, padrinho. Adoça a voz. Eu sei bem as vantagens do celibato. Mas vosmecê sabe que eu não sou homem de andanças. Eu quero é ficar no meu canto e cuidar da minha família. NETTO Está bem, está bem, vamos arranjar esse casório. O rosto de Benedito irradia alegria. BENEDITO Vosmecê não ficou zangado? NETTO Nãããoooo! Por que haveria de ficar? BENEDITO Então vosmecê fala com os pais dela? NETTO Quando voltar de Paissandu. BENEDITO Obrigado, padrinho. Sua benção. Beija a mão que Netto lhe estende. NETTO Deus te abençoe. BENEDITO Boa noite, padrinho. NETTO Boa noite. Quando os passos silenciosos já estão na outra extremidade da grande sala. Benedito, tu vai ser feliz com ela. BENEDITO Obrigado, padrinho. NETTO Apaga a luz, faz favor. Benedito vai até o lampião na parede e sopra-o. Sai e fecha a porta. A sala fica iluminada apenas pelo fogo da lareira, e torna-se cheia de sombras que dançam nas paredes de pedra. Netto torna a ouvir o vento. A mão busca o cálice do Porto. Acomoda-se bem, toma um gole e fica olhando o fogo. EXT / DIA / ESTRADA/PAYSANDU Close do olho de Maria, piscando. Tema de Maria. 53 / EXT / DIA / CANCHA (PAYSANDU) Vemos um pequeno grupo com cavalos, junto a um potreiro onde estão mais dez cavalos de raça. Don José discute com um homem que anota um caderninho. Netto se aproxima montando um cavalo, e puxando outro pela rédea. Os homens cochicham, apontam. Don José nota a presença e interrompe a discussão com o homem do caderninho. DON JOSÉ General, seja bem vindo. Estávamos contando com sua presença. NETTO Eu não perderia esta corrida por nada, Don José. Uma carruagem se aproxima. Netto e Don José caminham até ela. Don José abre a porta, Maria desce da carruagem, elegantíssima com um belo chapéu. DON JOSÉ Esta é minha filha, Maria. NETTO (beijando a mão da moça) Já tivemos o prazer de um encontro. MARIA Dizem que o senhor é o favorito, general. DON JOSÉ Os amigos do general garantem que ele ganhará com dois corpos de vantagem. Estão apostando nisso. NETTO Meus amigos são pessoas otimistas, don José, mas eu não seria assim tão temerário. MARIA Não pode deixar seus amigos mal, general. Quer apostar como não chega dois corpos na frente? NETTO Não posso recusar uma aposta a uma dama. Apostado, senhorita. Netto monta o cavalo, dá meia volta, e sai cavalgando do plano. 56 / EXT / DIA / CANCHA Netto e o outro cavaleiro estão alinhados. O pequeno público se amontoa. Maria está um pouco distante, mas observa a cena atentamente. Um homem atira. Os dois arrancam. O outro cavaleiro sai na frente, mas Netto se iguala rapidamente. Os torcedores gritam e estimulam os corredores. Os dois cavalgam velozmente, quase alinhados percorrendo toda cancha, mas Netto chega um pouco à frente, menos que um corpo. Entra som de sapateado. EXT / DIA / ESTÂNCIA DE DON JOSÉ Um grupo de pessoas dança um sapateado num pátio interno, perto de um grupo que está fazendo um churrasco. Há vários convidados circulando, tomando mate ou bebendo em taças. 57 / INT / DIA / CASA DE DON JOSÉ A maioria está em pé, empunhando taças e charutos. À esquerda de Maria Escayola, de olho ávido no decote dela, está o embaixador da Inglaterra, um homem gorducho, apertado num terno de veludo verde, com um grande tope púrpura pendurado no peito. Don José Escayola toma o braço de Netto. DON JOSÉ O senhor não conhece ainda o embaixador de Sua Majestade Britânica, Mr. Edward Thornton, general. CONVIDADO López é um bárbaro. MR. THORNTON López é mais que um bárbaro. É uma ameaça ao livre comércio. No grupo ao lado todos riem e aprovam com as cabeças. NETTO López talvez seja um bárbaro, Mr. Thornton, mas com certeza não é um lacaio. O inglês vira o rosto para Netto. MR. THORNTON Tenho ouvido falar no senhor, Mr. Netto. NETTO Pela sua expressão parece que não tem ouvido coisas boas, Mr. Thornton. MR. THORNTON Coisas incomuns, eu diria, Mr. Netto. A propósito, se não é inconveniente, o senhor poderia me esclarecer uma pequena dúvida? NETTO Pois não. MR. THORNTON O senhor é brasileiro ou rio-grandense? Uruguaio ou argentino? Blanco ou colorado? NETTO Eu sou um general, Mr. Thornton. Maria dá uma risada curta e coloca o leque sobre os lábios, enrubescendo. DON JOSÉ Nosso amigo Netto, senhor embaixador, é um general muito especial. MARIA É um general que tem seu próprio exército . MR. THORNTON Realmente, isso é uma particularidade muito interessante, Mr. Netto. MARIA Uma particularidade que com certeza não escapou a Sua Majestade Britânica. MR. THORNTON Confesso que não escapou, Dona Maria Sorri com arguta modéstia Se tivesse escapado, certamente eu não seria um bom súdito. NETTO Tenho certeza que o senhor é um bom súdito, Mr. Thornton. MARIA O senhor tem alguma coisa contra o fato de alguém ser súdito de alguém, general? NETTO Absolutamente, senhorita Maria. Apenas contra o fato de eu ser súdito de alguém. Para sua surpresa, ela sorri aprovadoramente. MR. THORNTON O senhor naturalmente não é um monarquista, Mr. Netto. NETTO Naturalmente. Se tivesse que escolher um rei, Mr. Thornton, escolheria a mim próprio. MR. THORNTON O senhor diz isso talvez porque não saiba que os reis são escolhidos por Deus, Mr. Netto. NETTO Na minha última entrevista com Ele não tocamos nesse assunto. MR. THORNTON O senhor tem um senso de humor muito particular, Mr. Netto. NETTO Gracias, Mr. Thornton. MR. THORNTON Eu sei que o senhor é republicano. Aliás, todos os senhores são republicanos. Mas há uma diferença, que não é sutil, entre um mandatário ser escolhido pelo populacho e ser ungido pelo nascimento, o que é o mesmo que ser escolhido pela vontade divina. Por isso a monarquia é insubstituível. DON JOSÉ A conversa começa a ficar séria, senhores. Somos de opiniões diferentes em vários assuntos, mas concordamos no essencial. Solano López é um ditador e basicamente, monarquistas ou republicanos, somos democratas. Estamos todos de acordo: Solano López é uma ameaça ao desenvolvimento da região, aos nossos negócios e a uma América livre e moderna. NETTO Solano López é uma ameaça aos negócios de Sua Majestade Britânica em particular, mas não creio que seja uma ameaça aos nossos negócios em geral, don José. DON JOSÉ E isso por que, general? NETTO López precisa de nós. MR. THORNTON (com sarcasmo) Precisa da credulidade dos senhores. NETTO Precisa de nossos rios. E de nosso mercado para vender seus produtos. O embaixador fica sombrio. MR. THORNTON Ele usará os rios dos senhores não para o comércio, mas para atacá- los quando se sentir forte. Solano López fechou o país ao mundo. É um ditador sanguinário. O senhor diz que é um republicano, um democrata, portanto. Vosmecê devia saber, Mr. Netto, que o livre comércio é a base da democracia. NETTO O livre comércio como base da democracia é a última invenção das ciências econômicas geradas na City de Londres, caro embaixador. A Inglaterra precisa de algodão desesperadamente para suas fábricas paradas, já que seu fornecedor habitual, sua antiga colônia, os Estados Unidos da América, está se divertindo numa guerra fratricida. Ora, como sabemos, o Paraguai tem algodão. Netto acende demoradamente um havana ante o olhar tenso do embaixador. O pequeno detalhe, Mr. Thornton, é que ele não quer vender seu algodão. Ou talvez queira, ao preço que achar mais conveniente. MR. THORNTON Vosmecê, Mr. Netto, tem o dom de simplificar temas complexos com uma candura comovente. Se admira tanto o ditador, por que é contra ele? NETTO Não o admiro. Apenas não ando distribuindo adjetivos como bárbaro e sanguinário quando quero dizer concorrente comercial ou com interesses econômicos diversos. MR. THORNTON Então vosmecê não é contra ele? NETTO Sou contra suas idéias. Não gosto de ditadores. MARIA Mr. Thornton afirmou que o livre comércio é a base da democracia. No seu entender, general, qual é a base da democracia? NETTO A vontade do povo, senhorita Maria. Não precisaremos de imperadores nem de reis. Faz uma vênia para ela. E nem de rainhas. Ela devolve a vênia. MARIA E, naturalmente, nem de caudilhos. Netto ergue sua taça. NETTO Naturalmente. Caudilhos são uma excrescência. MR. THORNTON Caudilhos são coisas do passado Olha para frente, com ar distraído Mas uma coisa eu admiro nos caudilhos, Mr. Netto. O instinto aristocrático. DON JOSÉ Senhores, vamos passar para a sala de jantar. A mesa está servida. Vamos comer, beber e, ao menos um pouco, falar das amenidades do dia. Acho que todos perdemos dinheiro hoje para os parelheiros do general Netto. NETTO (olhando para Maria) Nem todos. DON JOSÉ O general tem a obrigação de melhorar nosso humor depois do prejuízo que nos deu, e não ficar criando complicadas discussões internacionais. Dão risadas, largaram as taças, apagam os charutos. Netto sorri para o embaixador. NETTO O senhor gosta de cavalos? 58 / EXT / DIA / CURRAL 3 Cavalos brincam num curral. Correm, pulam e relincham. MARIA (off) Eu amo cavalos. NETTO (off) Mais do que gente? Passamos pelos cavalos e enquadramos Netto e Maria apoiado num cerca de pedra. MARIA (com olhar apaixonado) Mais do que gente, não. Mas depois de gente, o que mais eu amo são cavalos. NETTO Por que? MARIA São nobres. E são tão bonitos. Gosto de ver os cavalos nas paradas, tão fortes, tão garbosos. E gosto de ver os cavalos no Prado, longos, elegantes. E gosto de vê-los no campo, livres, tranqüilos. Os cavalos me descansam. NETTO É uma visão romântica. MARIA Romântica? NETTO Quem conhece cavalos sabe que são animais trapaceiros e egoístas. MARIA O senhor está com um humor terrível. NETTO Eu conheço cavalos. Meu negócio são cavalos. MARIA O senhor ficou mal humorado quando o embaixador disse que caudilhos tem o instinto aristocrático. NETTO O embaixador foi certeiro, mas ele me deixou mal humorado quando eu perguntei a ele se ele gostava de cavalos. MARIA E ele gostava? NETTO Disse que não. Mas apreciava corrida de lebres. Ambos riem e começam a caminhar, afastando-se do curral. MARIA Tenho ouvido muito a seu respeito, general. NETTO Coisas boas, espero. MARIA Escandalosas, me parecem. NETTO Deve ser um equívoco. MARIA Seu sucesso com as mulheres? Deve ser. NETTO Ouviu falar de meu sucesso com mulheres? Isso é completamente incrível. MARIA Suas viagens a Montevidéu são famosas, general. NETTO Um homem solitário geralmente é vítima de calúnias. Eu vivo para minha família e minha estância. MARIA Família? NETTO Não sabia? MARIA O senhor tem família? NETTO Eu tenho um filho. MARIA Um filho? NETTO Benedito. MARIA O senhor é solteiro. NETTO Benedito é adotado. MARIA Ah. Silêncio. Adotar uma criança é um gesto nobre. NETTO Encontrei Benedito no caminho, quando me mudava para o Uruguai. MARIA Por acaso não era uma criança de cor? NETTO De cor? Bueno, cor ele tinha, logicamente. Cor negra. Ele é preto como um carvão, se é isso que vosmecê quis dizer. MARIA General Netto, não se faça de proselitista comigo. Eu não sou o embaixador da Inglaterra. NETTO Eu tenho certeza que vosmecê não é o embaixador da Inglaterra, senhorita Maria. MARIA Obrigada. NETTO O luar está nos seus cabelos, senhorita Maria. Ela se move, incômoda. No embaixador ficaria um efeito desagradável, com aquela gosma com que empapa os cabelos. MARIA Seus poucos cabelos. Então, o senhor tem um filho chamado Benedito e duzentos escravos na sua estância. NETTO Nunca vi uma madona de Rafael. Nunca vi um autêntico Rafael. Gostaria de ver, mas perdi a vontade quando a conheci. MARIA Perdeu a vontade? NETTO Tenho medo de ficar decepcionado. Olha para suas mãos, sem pressa, sem sorrir. O número de escravos que dizem que eu tenho varia conforme a pessoa que o diz. Mas nunca ninguém me disse, ou me perguntou, se aquelas pessoas não resolveram me acompanhar de livre e espontânea vontade. MARIA Desculpe. NETTO A senhorita tinha livros de pintura naquele nosso célebre encontro na livraria de San José. MARIA O senhor espiou meus livros? NETTO Espiar, propriamente não o fiz. Não seria correto. Mas foi impossível não ler o título de algum. MARIA Aquilo não foi um encontro, general. NETTO É verdade. Fiquei com um galo na testa várias semanas. MARIA Que exagero! O meu durou dois ou três dias. NETTO Minha cabeça é menos dura. MARIA Segundo o consenso universal, mulheres não são seres frágeis e bisbilhoteiros e frívolos? NETTO Não por estas bandas. MARIA (mudando de tom) Não sabia que o senhor gostava de ler. NETTO As noites de inverno são demoradas em Piedra Sola. MARIA Como se chama o lugar onde tem sua estância? NETTO Cañada de la Piedra Sola. MARIA Isso. NETTO Já ouviu falar? MARIA As tardes de Paissandu também são demoradas. NETTO Sim? MARIA E um general solteiro é assunto de mulheres solteiras. NETTO Naturalmente. MARIA Não seja pretensioso. MARIA E ele disse? NETTO Certas coisas não se negam a um general. MARIA Principalmente se tem um exército particular. NETTO E depois que fiquei sabendo quem vosmecê era, implorei aos deuses a oportunidade de um encontro. MARIA Implorou aos deuses? Ficou subitamente humilde, general. Pensei que tinha entrevistas com eles. NETTO Implorei. E mobilizei meu exército particular para a necessidade de uma ação como a dos gregos para recuperar Helena. MARIA O senhor ficou zangado de verdade quando falei no seu exército. NETTO Eu sou um criador de gado. Mas, se houver necessidade, eu tenho muitos amigos. E meus amigos têm muitos amigos. MARIA Entendo. Ele inclina-se e apanha a garrafa de Porto. NETTO Seu cálice está vazio. Ela estende o cálice, ele enche-o com uma mão empunhando a garrafa, com a outra tocando na mão dela. NETTO Confio que na adega de don José haja mais dessas nobres garrafas de cor púrpura, senhorita. MARIA (fazendo gesto de levantar-se) Sem dúvida, depois da quantidade que o senhor trouxe de presente. NETTO Não é necessário, Maria. Agora estavam a se olhar nos olhos. É vosmecê que me estimula a coragem. Ela afastou os olhos dos olhos dele, afastou a mão da mão dele. Vosmecê me estimula a vontade de dizer coisas que nunca disse. MARIA Por favor, não diga. NETTO Eu não sou mais um homem moço. E tenho medo de ter levado uma vida inútil. Tenho medo de... MARIA Medo? O general Netto com medo? NETTO O medo é um sentimento que eu conheço muito bem. A minha vida toda andei cercado de homens com medo. Milhares de homens com medo de morrer ou de ficar aleijado na hora seguinte. E cercado de animais com medo, cavalos com medo, cães com medo. O medo eu conheço bem, senhorita Maria. É companheiro do homem. Do jardim escuro vem um sopro de frio. Ela aconchega o xale aos ombros. MARIA Eu também tenho medo. Mas numa coisa o senhor se engana, general. NETTO Sim? MARIA Que não é um homem moço. NETTO Ah, esse é um assunto que as mulheres não deixam morrer. MARIA Não subestime as mulheres, general. NETTO Não faria essa bobagem. É o segredo delas que me dá força. MARIA É esse então o seu segredo? NETTO Agora, conte-me um segredo seu. NETTO Os convidados todos já se retiraram há bastante tempo. Na verdade, sou o último convidado. Seus pais com certeza já foram dormir. MARIA Tenho trinta e oito anos e uma vida vazia. Esse é meu segredo. NETTO Não pode ser vazia, se apenas sua presença me estimula tantas coisas. MARIA Quando tinha dezoito anos, era noiva de um oficial de cavalaria. 63 / EXT / DIA / PAMPA 17 Close do noivo de Maria cavalgando com trajes regimento de cavalaria. MARIA (off) A última vez que vi meu noivo foi numa parada militar. Ele ia para a guerra, orgulhoso, jovem, tão belo... Digo que foi a última vez, mas ele voltou um ano depois. Voltou, mas não era ele. Close do rosto de Maria, emocionada. MARIA Tinham cortado as duas pernas dele. Mas isso eu acho que poderia suportar, pois era jovem e forte e não amava somente o corpo dele. O que eu não podia ou não poderia suportar era o fato de que Ramón estava em estado de choque. Não falava, não se mexia, não se alimentava. Passava os dias inteiros olhando fixo para a parede na sua frente, consumido por um terror que o atormentava e que era só dele, um terror ao qual ele não podia escapar e que não podíamos diminuir. Aperta a mão de Netto, sorri para mostrar coragem. Dois anos assim. Um dia de verão, na hora da sesta, começou a gritar, a gritar todo o terror que tinha dentro, todo o terror que tinha padecido, todo o terror dessas guerras tão heróicas que vosmecês tanto idolatram. Ficam calados, olham para as sombras do jardim. Morreu no fim da tarde, vinte anos atrás. NETTO Passei minha vida toda entre cavalos e homens. MARIA Passei minha vida toda entre rendas e novenas. NETTO Vosmecê estimula minha coragem. Me dá força para dizer palavras que nunca disse. Suavemente ela coloca a mão sobre os lábios dele. MARIA Não diga. NETTO Entre homens e cavalos, atrás de sonhos. E fugindo duma palavra. MARIA Não diga. NETTO Uma palavra sagrada. MARIA Não diga. NETTO Uma palavra obscena. MARIA Não. Eu tenho medo. NETTO Amor. Ela encosta a face na barba dele. MARIA (sussurrando) Vem aí outra guerra. Não vem aí outra guerra? Vôo razante da câmera sobre o pampa. Som de cavalaria se aproximando. PARTE 6 (Multidão) Cavalaria passa em disparada. 65 / INT / MADRUGADA / CORREDOR DO HOSPITAL Uma porta bate. Caminhamos em steadicam pelo corredor onde escorre água da chuva pela vidraça e estalam os reflexos dos relâmpagos na parede. CARTÃO Cinco anos depois. A porta bate em algum lugar. CARTÃO Hospital Militar de Corrientes, Argentina. 1o. de julho de 1866. Passamos pela porta entreaberta do gabinete onde o Dr. Fointainebleux dorme de boca aberta. CARTÃO Segundo ano da guerra entre a Tríplice Aliança e o Paraguai. Continuamos pelo corredor em direção a porta final. NETTO (off) Sargento, quero sua opinião sincera. Entramos pela porta. CARTÃO Madrugada. 66 / INT / MADRUGADA / QUARTO DO HOSPITAL Entramos no quarto e enquadramos Netto que passa a mão sobre o rosto e constata que ela sai encharcada do suor que poreja na barba grisalha. Fala olhando para os reflexos no teto. NETTO Sargento, o quê vosmecê faria se o homem que dorme na cama ao lado da sua, num quarto de hospital, teve as duas pernas decepadas por um cirurgião de meia pataca, e num determinado momento esse homem encara-o com os olhos marejados de lágrimas e diz: general, ele fez isso de propósito! Sargento, o que vosmecê faria se, bem no seu íntimo, vosmecê soubesse que esse homem disse a verdade, porque vosmecê descobriu que esse cirurgião é um maldito charlatão e é um sádico e que veio para a guerra para causar dor e tormento só porque isso lhe dá prazer? Sargento, eu tenho convicção de que o capitão de los Santos recorreu a mim como a uma autoridade. Eu tenho, portanto, a obrigação do exercício da autoridade. E sei, também, que ele recorreu a mim como a um amigo. Cala-se e procura o olhar do sargento. Vosmecê sabe o que vai acontecer se eu denunciar o tenente- coronel Fointainebleux. CALDEIRA Sei, general. Netto espera Não vai acontecer nada, general. NETTO Foi o que eu pensei, sargento. CALDEIRA E talvez riam de vosmecê, general. NETTO Isso também me ocorreu, sargento. CALDEIRA Então é esse francês cheio de fricotes que vosmecê quer despachar, general? NETTO Eu fiquei aqui matutando comigo mesmo, sargento, que, considerando as circunstâncias, talvez essa seja a única coisa decente a fazer. CALDEIRA Vosmecê pensou em algum método em especial, general? Netto não diz nada. Eu tenho esta pistola, general, mas é meio barulhenta. Pode despertar todo o hospital. NETTO Tem um bisturi na gaveta dessa cômoda. CALDEIRA Isso é uma novidade interessante, general. NETTO O tenente-coronel Fointainebleux costuma fazer uma ronda de madrugada. CALDEIRA Outra novidade interessante, general. NETTO Ele dorme num quarto no fim do corredor. Não vai nunca para casa. Acho que não tem casa. O único interesse dele é cortar pernas e braços, sargento, abrir barrigas, manchar as mãos imundas de sangue. CALDEIRA (close) Eu também conheci um homem assim, general. NETTO Conheceu? CALDEIRA Conheci. General, também eu tenho uma missão de vingança. E preciso do senhor. NETTO Precisa de mim? CALDEIRA General, preciso de sua licença para matar um homem. NETTO Quem é esse homem, sargento? CALDEIRA Está neste quarto, deitado numa cama. Netto hesita apenas um segundo. NETTO Vosmecê tem minha licença, sargento. CALDEIRA Só que ainda não pensei em como, general. NETTO Seja como for, precisa ser em silêncio. CALDEIRA Isso é verdade. NETTO E que seja antes do clarear do dia. CALDEIRA Talvez apertando com o travesseiro nas ventas dele, até que pare de respirar. NETTO Me parece uma boa idéia. 67 / INT / MADRUGADA / QUARTO DO HOSPITAL Close de Caldeira que está sufocando o major Ramírez com um travesseiro. CALDEIRA (close) Eu venho seguindo ele, general. Desde Uruguaiana estou de olho nele. Eu vi ele mandar botar no rio corpo de cristão que morreu de cólera, pra contaminar as pobres gentes. Vi ele arrancar a pele dum índio pra vender no comércio. Ele matava crianças, general. E mulheres. E grávidas. E pobres velhos. Eu vi ele mandar abrir uma cova e mandar jogar lá dentro os que restavam duma povoaçãozita chamada Ayuí-Chico. Todos pobres e desarmados. E ele dava risadas e se achava um grande herói. Grande Herói do Exército da Tríplice Aliança. NETTO (segurando os pés de Ramírez) Ele é uma besta humana, mas os paraguaios também fizeram muita barbaridade com nossa gente, em Uruguaiana, em Passo Fundo, no Touro Passo. CALDEIRA Eles estão pagando caro, general, mas este vai ficar impune, vai ganhar promoção e medalhas. NETTO Não pela nossa vontade, sargento. Caldeira solta o travesseiro quando sente que o major não se move mais. CALDEIRA Falta o seu, agora, general. Netto percebe que não sente mais a mão direita. NETTO Preciso de ajuda para vestir o uniforme. O sargento parece surpreso. Não vou andar por aí de camisolão, como se fosse um fantasma. E depois de despacharmos o carniceiro vamos ter que sumir no mundo, sargento. O sargento Caldeira aproxima-se do grande guarda-roupa junto à parede, abre-o e retira o uniforme de general do Exército Republicano Rio-grandense. NETTO Minhas botas. CALDEIRA Desculpe, general, eu sempre esqueço as botas. Remexe no guarda-roupa e as encontra. Como vosmecê sabe, nunca consegui juntar dinheiro para poder comprar umas para mim. NETTO Cansei de le oferecer um par de botas, sargento. CALDEIRA Nunca fui homem de aceitar caridade, general. NETTO Cansei também de escutar essa churumela durante toda minha vida, sargento. Me ajude a me vestir e vamos lá procurar o carniceiro. O sargento começa a ajudar Netto vestir o uniforme. NETTO O sabre. O sargento Caldeira apanha o sabre pendurado na parede. Netto afivela- o ao cinturão. O sargento alcança-lhe a banda tricolor - amarela, vermelha e verde - da República Rio-grandense. Netto passa-a sobre o peito. CALDEIRA Parece que vai a uma parada, general. Netto contempla seu reflexo nos vidros da janela. NETTO Um oficial rio-grandense tem o dever de cuidar da aparência. Três anos atrás fui a uma audiência com o Imperador do Brasil, a pedido dos meus amigos. O Imperador me olhou, deu um sorriso e disse: é verdade, general, que vosmecê não tira o chapéu a monarcas? Eu respondi: é verdade, Imperador, mas também é verdade que eu nunca fiz desfeita a um homem na casa dele. Por isso vim fardado de milico. Um oficial não precisa se descobrir em qualquer circunstância. Só diante de uma dama. É da etiqueta, não é verdade? Ele teve que concordar que era verdade. Puxa os punhos da camisa para os nós dos dedos, mexe com os ombros, vai se tornando mais pesado, mais solene. Porque fui falar com o Imperador do Brasil disseram que servi de instrumento aos ingleses que queriam a guerra contra López. Mas isso não era assunto meu. Eu cumpri minha obrigação com meus camaradas. O sargento alcança-lhe o quepe. Netto ajeita-o na cabeça. O Imperador do Brasil me disse que admirava nossa bela Província, mas que padecia muito com o ânimo belicoso dos rio-grandenses. Eu respondi que os rio-grandenses também amavam as belas artes e a democracia, e que também admirávamos essa vida tão lírica da Corte, essa Atenas tropical onde ele reinava tão graciosamente. Mas que tínhamos sustentado duzentos anos de guerras de fronteiras, e que sabíamos que mais guerras ainda viriam. Não éramos belicosos, como ele dizia, porque assim o desejávamos, mas porque, se a uns coube o destino de Atenas, a outros coube o destino de Esparta. CALDEIRA Mas bá! Gostei do floreio, general. Netto dá um último olhar na sua imagem nos vidros da janela, alisa a banda tricolor no peito. NETTO Sargento, pegue o bisturi na gaveta da cômoda. O sargento Caldeira remexe na gaveta e acha o bisturi. Mostra-o para Netto e guarda-o no bolso da túnica. NETTO Não vou sujar meu sabre no sangue desse verme. Olham o corpo esteiriçado do major Ramírez sem a menor comiseração. Agora, em frente. O sargento abre a porta, espia o corredor. Vazio. NETTO Sargento, não sinto mais minha mão direita. O sargento para na porta, olha para ele com estranheza. NETTO (vexado) Já estou melhor, sargento. Vamos fazer essa consulta com o coronel Fointainebleux. 68 / INT / MADRUGADA / GABINETE DE FOINTAINEBLEUX O sargento Caldeira empurra suavemente a porta entreaberta do gabinete e lá está o tenente-coronel dormitando sobre a escrivaninha cheia de papéis, a mão morena esbarrando no tinteiro, a cabeça apoiada num grosso livro de capa escura, a bolsa de tabaco ao lado. Ficam olhando o tenente-coronel dormitar sobre a mesa. Então o sargento Caldeira em dois passos está atrás do tenente-coronel Philippe Fointainebleux e agarra seus cabelos e puxa sua cabeça para trás e no momento que o tenente-coronel abre os olhos achando que está no meio de um incômodo pesadelo o afiado bisturi abre sua garganta de lado a lado abafando seu grito. O sargento Caldeira larga a cabeça do tenente-coronel sobre a escrivaninha e olha para Netto. CALDEIRA Este não carneia mais ninguém. NETTO Vamos embora. 69 / EXT / MADRUGADA / PÁTIO DO HOSPITAL Sob chuva, Netto e Caldeira atravessam um jardim com canteiros floridos, passam debaixo de grandes árvores escuras, pisam seixos redondos que formam um caminho curvo que conduz aos grandes muros do portão. NETTO As sentinelas. Ficam algum tempo imóveis junto ao muro, agüentando a chuva e examinando a situação. CALDEIRA Por aqui. Avançam curvados, Netto percebendo cada vez mais que suas forças terminavam, mas forçando o organismo a resistir. O muro termina e começa uma cerca de madeira e logo chegam num pequeno portão. O sargento empurra-o com o joelho e saem da área do hospital. Os dois caminham, tateando, agarrados um ao outro, curvados, sem olhar pra trás, buscando a grande mancha escura do bosque na sua frente. NETTO Aqui não vão nos achar tão cedo, sargento. Amanhã de manhã vamos roubar cavalos e voltar para casa. Olha com perplexidade para o sargento Caldeira, com súbita fúria, como se despertasse. Passa a mão no rosto e sente-o ardendo. Eu não posso voltar para casa. Eu não sou um ladrão de cavalos. Eu sou um oficial. Eu tenho responsabilidades. Matamos aqueles dois animais por motivos humanitários. Eu não vou fugir. CALDEIRA Vosmecê vai à Corte Marcial, general, mas o que vão fazer com um negro velho como eu? Netto abaixa a cabeça. A febre começa a cegá-lo. NETTO Eu não vou abandoná-lo em nenhuma circunstância, sargento. As pernas vergam, mas resiste. Depois de sairmos deste apuro, vou pensar no que é mais correto para fazer, sargento. 70 / EXT / NOITE / BOSQUE Continuam andando através do bosque. As frondes invisíveis se movem e sussurram. Agora não chove mais. Uma neblina esbranquiçada envolve o mundo. NETTO Sargento. Para, lívido, encosta o rosto num tronco molhado. A carta de Garibaldi... CALDEIRA O que tem, general? Tá aqui comigo. NETTO Vosmecê falou em Corte Marcial, me lembrei da carta do corsário. CALDEIRA Sim. NETTO Ele pergunta onde Bento, onde Teixeira, onde Canabarro. CALDEIRA Sim. NETTO Todos mortos. CALDEIRA Todos? NETTO Bento morreu um ano depois do Tratado de Paz. CALDEIRA Eu soube dessa desgraça. NETTO Dizem que foi um cancro. Mas, pra mim, foi tristeza... Dessa que dá fininho e vai carcomendo por dentro... O coronel Teixeira, vosmecê sabe muito bem. CALDEIRA A lança de Manduca Rodriguez. 72 / EXT / NOITE / BOSQUE Netto em close, sentado no tronco de uma grande árvore. NETTO Eu matei índios. Matei negros. E matei brancos. Mais do que tudo, matei castelhanos: uruguaios, argentinos, paraguaios, chilenos. Matei portugueses. Matei galegos. Eu ficava matutando comigo mesmo nessa gente toda que matei e me dava um peso enorme no coração, sargento. A gente não quer acreditar que tudo é inútil. A gente quer se lembrar porque matou tanto e pensa nas idéias, nas grandes palavras, e não acha resposta que valha à pena tanto sangue. Não me lembro mais das palavras, só me lembro dos mortos, um a um. Negros, brancos, índios, cafuzos, a interminável procissão de gente morta nessas guerras do pampa. CALDEIRA Eu só me lembro dum negrinho. 73 / EXT / NOITE / MARGEM DE RIO Um relâmpago ilumina árvores. Netto vê o brilho prateado de um rio. NETTO Vamos andando, sargento. Chegam na margem. A massa esbranquiçada da neblina paira no meio do rio. O sargento olha em todas as direções. Parece procurar algo. CALDEIRA O canoeiro devia estar aqui. NETTO Canoeiro? A praia é comprida e deserta. Netto ouve um leve rumor de água agitada. Firma os olhos, mas nada é visível. E então, pouco a pouco, do interior da neblina, vai tomando forma, lento e silencioso, longo e escuro, o perfil de uma canoa. É conduzida por um homem coberto por uma capa negra. O homem impulsiona a canoa com uma vara comprida, seguro do rumo, sem pressa. É uma canoa de madeira, comprida e estreita. Encosta na praia a alguns metros deles. O canoeiro salta para a margem. Netto não vê seu rosto. A capa negra arrasta no chão. O canoeiro fica parado. O sargento toca no braço de Netto. CALDEIRA Vosmecê deve tomar essa canoa, general. NETTO Bem pensado, sargento. Para onde nos leva? CALDEIRA Para a outra margem. Mas eu o acompanho até aqui no más. Vosmecê vai só. Netto estremece com violência. NETTO E por que isso? CALDEIRA Eu já atravessei esse rio, general. NETTO (atormentado) Já o atravessou? Quando, sargento? CALDEIRA Em Tuyuty, general. Encara num instante de fascinado terror o espectro do sargento Caldeira. Netto olha para o vulto imóvel e silencioso, que o espera. NETTO Não tem importância, sargento. Essa travessia a gente deve fazer sozinho mesmo. Hasta la vista. CALDEIRA Hasta la vista, general. Apruma o corpo e caminha na direção da canoa. NETTO (para o Vulto) Meu nome é Antônio. O Vulto permanece calado. Netto faz uma vênia. Usted primero, caballero. O Vulto não se move Não tenha medo que eu não vou fugir. O Vulto entra na canoa. Netto volta-se e não vê mais o sargento Caldeira. Olha para o céu escuro. Aproxima-se da canoa pisando vagaroso a areia. Netto empurra a canoa e salta para dentro dela. Senta-se comodamente. Close de Netto. A brisa agita seus cabelos. Sobe o “Tema dos Lanceiros Negros” FUSÃO EXT / DIA / CAMPO Vemos a bandeira tricolor da República Rio-grandense, e em seguida os cavaleiros Netto, Teixeira, Lucas, Joaquim, Calengo e Caldeira, cercados por Quero-quero, Palometa, Chupim o Velho e Milonga, e seguidos por um pelotão de cinqüenta lanceiros negros com suas jaquetas vermelhas e suas cartolas negras, empunhando compridas lanças. ... 103